domingo, outubro 17, 2010

Duas Inglesas em Alcobaça: Ann Bridge e Susan Lowndes



Ann Bridge e Susan Lowndes foram duas inglesas que nos anos 40 do século passado viveram em Portugal. A primeira era esposa do embaixador da Grã – Bretanha em Portugal por essa altura. Dotada para a escrita, esta embaixatriz era ainda arqueólogo e botânica amadora. Ao chegar a Portugal na missão diplomática do seu marido, foi incumbida de criar uma guia de Portugal, na qual se empenhou com sua amiga Susan Lowdes, que viria a casar mais tarde com um Português (Luis Marques), jornalista de educação anglófona.
As duas escreveram a famosa guia com o título original de “ A Selective traveller in Portugal” , que em Português recebeu o nome de “ Duas inglesas em Portugal”.
Para escrever esta guia, quase em jeito das heroínas do filme Telma e Louisa, percorreram o país num pequeno carro "em busca de locais raramente visitados pelos estrangeiros, tomando notas, tirando fotografias, analisando e verificando o que outros antes delas já haviam escrito (…)". No capítulo referente à Estremadura, hoje supostamente região do Oeste, incluíram páginas com as suas impressões em Alcobaça mas sobretudo sobre Mosteiro. Impressões essas não muito diferentes daquelas que tem qualquer turista que visite o mosteiro ainda hoje.
A povoação, parece que nem a viram, porque pouco ou nada dizem dela.
Seria isso um reflexo da falta de atracção pelo lugar, que tal como hoje não cativa o forasteiro a ficar?
Ali não se encontra vida nem alegria, mas um grupo de casas abandonadas e outras muitas em ruina e um comércio reduzido à venda de miudezas e peças de cerâmica a retalho, e a meia dúzia de cafés que servem para as coscuvilhices entre vizinhos, coisa que já não se vê nas mais pacatas aldeias.



Ann Bridge e Susan Lowndes em Alcobaça


Capela do Desterro e o cemitério referido no livro. Postal de 1930


O Mosteiro de Santa Maria, em Alcobaça (Hotel Bau), foi originalmente fundado por D. Afonso Henriques, em 1152, em agradecimento pela reconquista de Santarém aos muçulmanos. Foi uma fundação cisterciense e o plano é praticamente idéntico ao do Mosteiro de Clairvaux. Toda a igreja tem a mesma altura e é a maior do país. O interior é fabuloso, com duas longas linhas de colunas brancas agrupadas e imensamente altas, que se estendem na distancia; toda a talha rococó e estuque colocados sobre as colunas em 1770 por William Elsden, o arquitecto inglês que trabalhou para Pombal, foram retirados num restauro recente, pelo que, embora a beleza original do edifício tenha sido recuperada, a igreja parece ter perdido a sua vida. No transepto direito situa-se a famosa capela construída por D. Pedro I para o seu próprio túmulo gótico, esplendidamente decorado, e para o da sua amada, Inês de Castro. Em frente a esta capela, no mesmo transepto, pode ver-se um grupo extraordinariamente bonito, em terra­cota pintada, do século XVIII, sobre a morte de São Bernardo, ainda que tenha sido terrivelmente danificado pelos soldados de Napoleão. A maior parte dos monges em tamanho real que rodeiam o santo moribundo perderam as respecti­vas cabeças, mas os seus corpos são muito belos no pesar abatido que demonstram, e vários querubins com instrumentos musicais mantém os pequenos rostos gordos e tristes.
A abadia demonstra, tal como quase todas as igrejas exageradamente restau­radas, a extrema dificuldade em voltar a preencher os altares vazios. O altar-mor de Alcobaça possui um crucifixo muito bonito, mas ridículos candelabros moder­nos em ferro de cada lado, e o pequeno púlpito de madeira é ao mesmo tempo feio e miserável. Por trás do altar-mor existem varias capelas completamente isoladas, como as da Sé de Lisboa, e a Capela do Sagrado Sacramento fica escondida perto da sacristia, que foi construída por João de Castilho em 1519, recuperada após o terramoto de 1755, e que está agora a ser novamente restaurada. A esquerda da nave, urna porta conduz a um claustro no qual existe urna capela com urna requintada estatua policromática em pedra, do século XV, da Virgem com o Menino. Urna porta e escadaria conduzem até ao vasto dormitório, que tem urna grande quantidade de telas encostadas as paredes. Fora dos claustros há ainda um esplêndido refeitório com um púlpito para leitura e a grande cozinha que tanto impressionou Beckford, não muito diferente da cozinha de Sintra, com as pare­des revestidas de azulejos azul-claros que proporcionam um curioso efeito subaquático, ampliado pelo som da agua corrente que passa pelo tanque com peixes numa das extremidades. Ao centro, a grande lareira tem por cima urna enorme chaminé aberta que se ergue a toda a altura do edifício. A bonita sala do capítulo está agora rodeada por enormes estatuas coloridas em terracota de anjos e santos feitas pelos monges dos séculos XVII e XVIII e que costumavam estar nas capelas do transepto da Abadia. É de realçar um par de bonitos e jovens anjos assexua dos, curiosamente trajando saia franzida, com cabelos enfunados pelo vento e expressões muito doces.
A Sala dos Reis, á esquerda da entrada principal da igreja, é deveras curiosa, com as suas grandes estatuas em barro de reis portugueses vestidos com trajes do século XVIII. Em redor da sala, que, por ter sido toda caiada de branco, chega a ferir a vista, existe um friso de azulejos da fábrica do Juncal, do século XVIII, descrevendo a fundação do mosteiro, e um painel de azulejos manuscrito com a sua historia. Existe ainda uma enorme panela de sopa em bronze, de dimensões heróicas, que se diz ter sido levada pelos portugueses para a batalha de Aljubarrota, em 1385, quando a sopa dos soldados era feita nesta panela!
Urna das coisas que muitas pessoas acabam por não conhecer em Alcobaça e o pequeno cemitério no exterior da porta do vestíbulo que conduz da sacristia ao santuário. Neste jardim deserto ergue-se a graciosa e peculiarmente estilizada capela de Nossa Senhora do Desterro, do século XVIII, fastidiosamente atravancada no exterior com casas ou capelas funerárias; o muro do terraço sobre o qual. esta capela se ergue é decorado com alguns azulejos muito divertidos e muito pouco religiosos, de cenas de caça, inclusive urna de veados apanhados com lagos, e urna outra de um cavalheiro que foi obrigado a refugiar-se numa árvore por causa de um urso! Todo o local é extremamente silencioso e calmo: as rosas florescem, um ribeiro corre num canal de pedra debaixo do parapeito, e os habitan­tes de Alcobaça que vivem por trás do Mosteiro, para evitarem dar a volta ao enorme edifício e passar pela praça arborizada do mercado, no lado norte. Metem-se pelo jardim e seguem por um atalho através do vestíbulo e da nave, emergindo nos degraus abaixo da grande fachada rococó, no centro da qual se insere a entrada cisterciense de sete fiadas de pedra, como se fosse uma jóia arcaica no meio de uma massa rica.

terça-feira, outubro 12, 2010

James Murphy e uma visita a Alcobaça.

James Murphy
Gravura feita a partir de uma pintura de Sir Martin Archer Shee,
famoso pintor de retratos da aristocracia inglesa.

Como todos os estrangeiros que passaram por Alcobaça e escreveram as suas impressões do que viram, o arquitecto Murphy não foi excepção.
O interessante das descrições destes viajantes é a variedade de interesses que focam, bem como os pontos de vista onde centram os olhares.
No caso de Murphy é curioso ver como ele relata as práticas historiográficas portuguesas, que dá mostras conhecer, e que constata estruturarem-se em milagres para explicarem o real.
É o discurso religioso a contaminar o discurso histórico. Um discurso que em alguns meios académicos ainda subsiste.
Por graça, e com um british humor, contrapõe aquilo que é um facto: os nossos principais monumentos não surgiram de práticas devotas, mas de práticas comemorativos. Isto é: Os grandes monumentos portugueses ergueram-se exclusivamente para agradecimento e paga de promessas por benefícios recebidos ou solicitados ao divino.
Aconteceu com os mosteiros de Alcobaça, da Batalha, dos Jerónimos, o convento de Mafra, …

Isto é curioso em termos de como se vive o catolicismo, e é de perguntar se a religião católica em Portugal, como fenómeno estruturante da espiritualidade Portuguesa, está assenta na devoção ou no interesse.
Como arquitecto, Murphy admirou-se com a grandeza do mosteiro de Alcobaça em termos de conjunto edificado, por contraste com outros monumentos portugueses. Mas não deixa de fazer reparos ao monumento, alguns até bem interessantes sobre erros técnicos e de interpretação em relação ao estilo em que o catalogavam. Chega a referir a não existência de elementos que possam estabelecer uma relação com o estilo gótico e recorre até à ideia da proporção das estruturas…
Sobre o interior relata-nos as suas apreciações estéticas e descreve algumas obras existentes. Estas apreciações são feitas em tom de reprovação, outras de forma mais neutral e outras com satisfação. Mas por elas sabemos terem existido pinturas de um tal Vasques, Josefa de Óbidos, um suposto quadro de Ticiano e retratos dos monarcas portugueses, desde a fundação de Portugal até ao período em que ele visitou o complexo monacal, executados por um tal Antino Amaral.
Desde a saída dos monges de Alcobaça até à actualidade, diversas são as obras literárias, algumas escritas de forma ligeira e outras por pessoas sem autoridade, que testemunham um espólio artístico que o mosteiro possuía, e das quais não tenho razão para duvidar. Mas em rigor não se sabe quantitativa e qualitativamente qual era. Nem mesmo se sabe o nome dos artistas com trabalhos representados. Apesar disto, creio haver relações dos bens de várias épocas e das encomendas de trabalhos a artistas, mas suponho que nada está estudado.
Proporcionalmente à falta de estudo, cresceram mitos que nunca foram destruídos sobre o edifício, os monges, a agricultura e a arte existente no mosteiro. Um desses mitos é o dos “Monges Barristas”, no entanto ninguém conhece o nome de algum deles. O mito dos “Monges Barristas” é uma ideia carente de fundamento, mas que deleita os rabiscadores de histórias do Mosteiro sobre os monges e a suposta agricultura monástica.
Impressiona o esforço com que impingem essa ideia delirante até à exaustão nos jornais locais, mas que em boa verdade só existe na fantasia deles. Esta fantasia já se transformou em patologia, e a patologia em sinónimo de aridez intelectual. Infelizmente é também com ela que se nutre a falta de “massa crítica” de que Alcobaça tanto carece, como alguém já afirmou… e tanta falta faz.
O relato de Murphy sobre Alcobaça tem cerca de 20 páginas. Fiz delas uma selecção, para dar continuidade aos textos de estrangeiros sobre o mosteiro e a terra…


por James Murphy
Vista de Alcobaça, inicio do século XIX

"Ergue-se o Real Mosteiro de Alcobaça numa bonita vila do mesmo nome, cerca de 15 léguas ao norte de Lisboa.
Está bem abrigada, especialmente para oeste, por terrenos elevados e que gradualmente vão subindo a urna altura considerável. Toda a região vizinha está bem cultivada e produz trigo e frutas de várias espécies.
Ao examinar a origem das edificações religiosas do século XII, ob­servamos que a maior parte delas provém da gratidão por diversos fa­vores recebidos nos campos de batalha ou ainda tendo em vista o resgate dos pecados do primeiro homem. Não é pois impropriamente que são chamados templos de gratidão e penitencia. Este magnífico monumento tem, indubitavelmente, a sua origem na primeira causa.
Foi fundado em 1170 por D. Afonso71 o primeiro rei de Portugal, depois da conquista de Santarém aos Mouros, no cumprimento do voto que fizera de perpetuar a memoria do feito com a fundação de um mosteiro72.
Faria73 relata que S. Bernardo (residente, nesse tempo, em Claraval, na França) sendo inspirado pelo piedoso desígnio do rei, enviou dois monges para principiar o mosteiro no próprio dia em que fora feito o voto.
Adiante observamos que o local originariamente escolhido não foi aquele em que esta construído. O plano tinha sido trabado para os alicerces serem abertos junto a estrada, mas um anjo veio uma noite afastá-los alguns pés para trás, para mais adequada situação. Este notável acontecimento está representado num grande painel que podemos admirar na galeria do Hospicio75.
O mesmo anjo teria feito uma louvável acção tornando extensiva a igreja paroquial a sua delicada emenda. Esta ergue-se no lado oposto ao mosteiro, a meio da estrada principal, numa situação mais indicada para um arco triunfal do que para um edifício de devoção.
Milagres deste calibre, tão raramente ocorridos em nossos dias, não eram, ao que parece, invulgares nestes tempos primitivos. Escritores idóneos afirmam-nos que quando Constantino-o-grande intentou trans­ferir a sede do Império para este, escolheu Calcedónia para capital. Quando os cabouqueiros começaram a abrir os alicerces, algumas águias, as antigás mensageiras de Júpiter, transportaram esses alicerces e deixaram-nos cair sobre Bizáncio. Perante isto o Imperador determinou que se construísse a nova cidade onde ela se encontra actualmente.
E muito lamentável que estes guardiões da arquitectura não tenham feito uma visita a Londres. Seriam poucos os londrinos que teriam pena de ouvir dizer que a igreja de S. Clemente, na Strand, havia sido con­templada com um desses milagres.
Mas voltando ao ponto: este mosteiro pode considerar-se como co-memorando três acontecimentos notáveis - a origem da monarquia por­tuguesa, a fundação da Ordem de S. Bernardo e a introdução de uma nova arquitectura no reino, a qual é chamada pelos nossos antiquários o "Moderno Gótico Normando".
A igreja é inteiramente construída neste estilo, excepto a frontaria de oeste, que é mais moderna que o restante e exibe como que urna selecção dos defeitos dos estilos Toscano e Gótico.
Ao entrar na igreja, pelo lado oeste, surpreende-nos a grandiosidade do efeito geral, peculiar aos interiores das igrejas góticas. Muito poucas, porém, a possuem em tão alto grau como esta. A perspectiva do limite este termina numa magnificente gloria colocada sobre o altar a urna distancia de 300 pés da entrada. Na aparência esta distancia figura como mais considerável pela pouca largura da nave e pela sucessão regular dos pilares, em número de 26, isto é: 13 de cada lado. Cada pilar dista do outro 17 pés e 3 polegadas, mas segundo as regras obser­vadas nos mais proporcionados edifícios góticos, esta distancia é um terço menor do que deveria ser.
A prolongação dos pilares está portanto defeituosa. As suas dimensões são maiores do que o arco requer. Sem dúvida, o arquitecto desconhecia a lei dos mínimos em construção, que a experiencia ou a ciência ensinaram aos seus sucessores nesta arte.
No conjunto existe urna diferença muito pequena entre a arquitectura desta construção e a chamada Normando Antigo ou Saxão, em que os arcos são pontiagudos em vez de semicirculares, como neste último estilo. Em muitos outros aspectos observamos as proporções defeituosas e as rudes esculturas das igrejas saxónicas. Os capitéis, principal­mente, são blocos quase lisos e as bases dos pilares têm poucos ornatos. Os flancos dos arcos e arquitraves das janelas precisavam daquela profundidade e agudeza para darem um aspecto delicado.
O limite este ou coro é de forma semicircular, a maneira das antigás igrejas, ou basílicas, as quais o abade Fleury supõe terem sido feitas desta forma, pelos cristãos, para imitarem, em parte, os tempos judai­cos onde o Sinedrim reunia.
O trabalho gótico, que primeiramente decorava o coro, está agora revestido de colunas gregas com todos os seus acessórios. Esta modificação foi feita há cerca de 18 anos por um escultor inglés chamado William Elsden, a pedido dos frades. Nada pode haver de mais desagradável para qualquer amador de antiguidades, ou mesmo para qualquer pessoa de menor gosto, do que este remendo em estilo grego na parte mais vistosa do monumento construído no simples estilo gótico.
Como a igreja de Alcobaça é, na Europa, um dos primeiros espécimes do Moderno Gótico Normando e talvez o mais magnífico do período longínquo em que foi fundada, muito nos aprazaria, se não fosse estranho ao nosso assunto, dar mais pormenorizados informes da sua arquitectura, ilustrando-os com gravuras. Poderíamos assim demonstrar que as conjecturas respeitantes a origem do estilo gótico não estão confirmadas neste edifício, porque nada encontramos, nem de longe, que possa ter semelhança com as âncoras ou ramagens da arquitectura Mourisca ou Sarracena, em que se supõe terem sido inspirados os arcos pontiagudos.
A frontaria oeste do mosteiro, incluindo a igreja, que se encontra ao centro, tem o comprimento de 620 pés, sendo a profundidade de 750. O espaço aqui compreendido é ocupado por dormitórios, galerias, claus­tros, etc. Um escritor português, falando da magnificência deste mos­teiro, diz que os seus claustros são cidades, a sua sacristia uma igreja e a igreja uma basílica.
Para melhor se conceber a ideia do que dizemos, vamos dar as dimensões dalguns compartimentos. A cozinha, por exemplo, tem o com­primento de cerca de 100 pés por 22 de largura e 63 de altura, desde o chão até á abobada. O fogão tem 28 pés de comprimento por 11 de largura e está colocado ao centro da casa, em vez de estar, como habitualmente incrustado na parede, tendo assim acesso por todos os lados. A chaminé forma uma pirâmide que se apoia sobre 8 colunas de ferro fundido. Uma corrente de agua, subterrânea, passa por entre o solo, inundando o pavimento quando se pretende lavá-lo.
Apesar das suas grandes dimensões, este compartimento nunca tem sequer, uma polegada desocupada, desde manhã até á noite, porque toda a industria do convento ali está concentrada. Os trabalhos são feitos sob a vigilância de um dos irmãos leigos.
O refeitório tem o comprimento de 92 pés por 68 de largura. Esta largura está dividida em três pórticos com duas series de colunas de pedra. As mesas estão colocadas nos dois extremos da parede. No topo, onde o prior toma o seu lugar, existem 2 grandes quadros: um repre­senta a última Ceia e o outro Cristo e os dois Discípulos de Emauz.
Não podemos deixar de mencionar a adega, por ser um dos mais valiosos compartimentos pertencentes ao mosteiro. Tem 40 grandes cas­cos que se calcula conterem perto de 700 pipas de vinho.
E digno de nota o facto de estes frades que se congregaram no pro­pósito manifesto de estudar tanto como de orar não possuírem uma biblioteca a não ser que mereça este nome o que não passa de um gabi­nete que escassamente contem tantos livros quantas são as pipas de vinho que existem na adega.
A ala noroeste do mosteiro está destinada 3. recepção dos visitantes e daí a designação de Hospício.
Toda a sua extensão, que é de 230 pés, está dividida em cómodos e magníficos aposentos. As antecâmaras têm boas pinturas sendo de men­cionar especialmente o Julgamento de Salomão e muitos retratos de papas e cardeais, muito bem executados por um artista português chamado Vasques. Entre estes últimos retratos encontrei um de S. Tomás de Cantuária.
Os aposentos reais estão decorados com os retratos dos soberanos de Portugal, desde a fundação da Monarquia até aos nossos dias. Ultimamente têm sido pintados por um português, chamado Antino Amaral. Lamento que o amor a verdade me não deixe dizer que estão bem feitos.
O pintor mostra ter um completo desconhecimento do valor da luz e das sombras e uma ideia imperfeita do que é desenho. Existe aqui um retrato pintado por uma senhora portuguesa chamada Josefa que vale toda a colecção.

A serie de retratos mencionados está disposta pela seguinte sucessão cronológica: No compartimento a que chamam Sala do Trono, encontram-se va­rias estatuas dos reis de Portugal, feitas por um escultor de Paris, algumas colocadas em nichos e outras sobre pedestais com a altura de 8 a 9 pés. Não me lembro do nome do artista, nem nunca, talvez, ele tivesse sido incluído na lista dos verdadeiros imitadores da Natureza.
No terceiro dia da minha chegada aqui, fui conduzido por dois frades aos aposentos dos noviças.
Logo na galeria de entrada, encontrei urna quantidade deles, entre os 14 e os 18 anos de idade, alinhados como soldados. Conservavam-se numa atitude respeitosa, de olhos fixos no chão, enquanto o superior, designado por Padre-Mestre, eslava em frente deles, com um livro nas mãos. Não me surpreendeu verificar que a presença de um estranho os fizesse levantar a cabeça.
Na Capela dos Noviços existe uma das mais apreciáveis colecções de pintura do reino. Para não abusar da paciência dos frades apenas tive tempo para examinar algumas delas.
Representa um dos quadros uma pequena figura da Madona, que se supõe ter sido pintada por Ticiano e que é bem do seu estilo. O colorido é delicado e ainda que de urna leve pintura, tem um efeito grandioso e forte, pela maneira artística como são contrastadas as cores.
Os estranhos, segundo ouvi, são raramente autorizados a visitar os aposentos dos noviços; se não fosse isso teria feito o catálogo desta valiosíssima colecção.
Daí passei ao lado oposto, por um corredor, onde havia de cada lado uma ala de celas pertencentes aos noviços, que, de momento, estavam ausentes. As dimensões de cada uma não deviam ir além de 14 por 9 pés.
Quereria tê-las visitado, mas era o Superior que tinha as chaves. Em cada urna das portas havia urna abertura por onde pude observar numa das celas, um airoso moço de aspecto macerado e pálido, de uns 16 anos, que usava vestes longas e negras, em atitude de oração, com o rosário nas mãos e os olhos fixados num crucifixo. As paredes em redor estavam despidas de pinturas ou quaisquer outros ornamentos, pelo que a sua meditação não poderia ser distraída.
A luz do dia entrava por uma pequena abertura situada junto ao tecto. Esta luz, coando-se apenas por um buraco, deixava cair do Sol poente os raios que incidiam sobre a sua tonsura, fazendo-a brilhar, enquanto tudo em redor mergulhava na sombra. Se Rafael tivesse desejado inspirar-se ali para a sua tela a "Súplica", não poderia ter encontrado melhor luz para tão belo efeito.
Sem intuito de me meter a apreciar a doutrina da Igreja no que se relaciona com a extinção ou regularização das paixões; observarei, no entanto, que, se a obediência e a solidão são das principais virtudes, grande deve ser a recompensa por estas provações.
Para que os frades nada mais tenham a desejar para o seu bem-estar, ou felicidade na vida monástica, estão dotados com um grande jardim, nas traseiras da igreja, plantado de árvores e arbustos e onde eles podem fazer agradáveis passeios. Ai se recreiam todas as tardes. A intervalos, existem caramanchões feitos entre o arvoredo, com bancos, onde os padres se abrigam do calor do Sol, a estudar ou a meditar. Ao centro deste jardim há um bonito lago oval, de 130 pés de diâmetro, com um obelisco ao centro.
Há vários ciprestes, ao fundo do jardim, cuja ramagem é engenhosamente trabalhada, representando figuras de homens, alguns caçando outros rezando. Usam umas largas tranças, outras cabeleiras. Esta espécie de estatuária, ainda que não classificada entre as belas-artes, aproxima-se mais da Natureza do que qualquer outra, porque estas figuras silvestres crescem na realidade, e são diariamente alimentadas pelo produto do solo. Têm o seu Inverno, Primavera e Outono e vivem e morrem como qualquer outro ser animado.
Contíguo ao jardim que venho mencionando, encontra-se uma coelheira pertencente ao Mosteiro e construída por forma que nunca havia visto.
Tem 200 pés de comprimento, por 125 de largura. Cercada de pare­des com 16 pés de altura. O chão é pavimentado com grandes ladrilhos quadrados cujas juntas estão ligadas com cimento.
Há pequenos abrigos ao longo do muro, onde estão colocados potes de barro ovais, com 11 polegadas de altura e 9 de profundidade. Cada um destes potes tem na parte da frente urna espécie de tubo arredon­dado, por onde a coelha aqui gera e cria os seus filhos. Dentro da área da coelheira há também varias filas de potes colocados visivelmente a parte, para os machos. Estão calculados, ao todo, em 5 ou 6.000 os coelhos que ali vivem alimentados pelas plantas dos jardins vizinhos juntamente com as sobras do convento.
Os frades deste convento bem como os do Porto, de que já falámos, não devem andar a pé fora dos domínios do mosteiro. Quando têm de viajar, são transportados em carruagens ou em mulas. Tinham grande número destes animais nas cavalariças, parecendo preferi-los aos cavalos, talvez por humildade, porque Guevara diz-nos que até ao seu tempo era um desprestigio para um cavalheiro, em Espanha, cavalgar uma mula.
D. João II, tendo noticia que estava quase extinta a criação de cavalos em Portugal, tentou incrementá-la proibindo o uso das mulas, mas o clero recusou-se a cumprir estas ordens e apelou para a Justiça do papa.
Não querendo o rei entrar em pleito por tal motivo, emendou a ordenação e inseriu-lhe urna cláusula onde se permitia a todo o clero continuar a servir-se de mulas, mas proibiu, sob pena de morte, que fossem ferradas. Assim calou as objecções, e venceu o rei o seu propósito.
O leitor facilmente poderá conceber o grande rendimento que é preciso para conservar esta instituirão, onde há cerca de 300 pessoas, incluindo criados, vivendo esplendidamente.
Mas o régio fundador teve o cuidado de prever todas as contingências. No momento em que fez a promessa da sua construção, dotou-o com todas as terras e mar que se divisam do cume da montanha vizinha e que atinge um largo horizonte. O rendimento tirado desta vasta área de terreno torna Alcobaça uma das mais ricas é mais magníficas instituições do género, não somente em Portugal, mas em toda a Europa.
Muitos dos seus privilégios têm sido ultimamente restringidos; no entanto, é opinião de muita gente que ainda possuem muitos. Julga-se também que o rendimento é demasiado grande, partindo do princípio de que a riqueza incita mais a recreios do que a oração.
Devo dizer que a estadia aqui, de 3 semanas, pode mostrar-me que estas acusações não têm base; pelo contrario observei a maior temperança e decoro, ao mesmo tempo que a hospitalidade e o conforto espi­ritual prevalecia em tudo.

Cada frade conserva a sua categoria, de acordo com a prioridade ou eleição. Os frades mais novos são muito submissos aos superiores e to­dos devem obediência ao Abade-Geral, que tudo dirige como chefe. Este prelado só tem como superior o cardeal. Tem a categoria de bispo, é esmoler do rei e chefe de todos os mosteiros e conventos beneditinos em Portugal. E eleito por 3 anos. Esta é a segunda vez que o actual Geral está desempenhando este cargo.
Qualquer estranho que visite este convento pode estar certo de en­contrar urna recepção hospitaleira.
Muitos jovens desta província são mantidos e educados pelos frades.
As sobras do refeitório são distribuídas pelos pobres, além de que há refeições propositadamente preparadas para eles, 2 vezes por semana. Assim, centenas de indigentes são constantemente alimentados aos portões do convento e os seus rendeiros vivem, pelo que se vê, mais confortavelmente que os de qualquer outro reino.
Os que protestam contra a opulência destes monges fariam bem em indagar se entre nobres e plebeus de toda a Europa, possuindo rendimento igual ao deste mosteiro, há alguém que espalhe tantos benefícios sobre os seus semelhantes como os padres de Alcobaça.
Nos arquivos do mosteiro está guardado, entre os muitos utensílios do culto, um cálice de ouro, trabalho delicado e que tem excitado a curiosidade de muitos sábios e letrados.
Está cravejado de muitas pedras preciosas, de cores diversas e orna­mentado com vários grupos de lindas figuras em baixo-relevo, repre­sentando a Paixão de Cristo.
Os frades não estão satisfatoriamente informados acerca dele, nem os arquivos fazem menção da época em que foi feito, nem por quem. Na opinião de alguns, é atribuído ao rei D. Manuel, outros supõem que foi adquirido com as jóias de D. Inês de Castro, aqui sepultada; outros ainda calculam que foi comprado com o tesouro de diamantes e anéis que D. Afonso I legou ao mosteiro, por sua morte.

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Como era considerado um autor de apreciável mérito no seu tempo, talvez possa desculpar-se a forma como trata o assunto e quanto se alargou nas suas considerações.
"Vendo, pois, que uns hospedes olhavam com atenção para as letras do Cálice, perguntei aos Padres se se sabia a significação delas; responderam! que muitos especulativos e homens doutos haviam trabalhado para as explicar, mas que até aquele dia ninguém se arrojara a interpretação do literário enigma. Levado de curiosidade trasladei os misterio­sos caracteres, não com presunção de os decifrar, mas com atenção de ocupar no exame deles algumas horas que o ócio poderia usurpar na tranquilidade do meu retiro.
"Por urna parte se me afigurava que toda aquela metálica literatura poderia ser fantasia do artífice para dar tratos a engenhos curiosos. Por outra parte parecia-me injustiça cruel letras tão formosas sem alma e, no meio de tanto oiro, sem valor. Mas todas as vezes que me convidava o génio para a interpretado delas via-me mais embaraçado que os argonautas na conquista do Velo de Oiro, o qual (segundo a opinião de alguns químicos) também era enigma de letras de oiro... Nesta perplexidade, não tendo eu, como Jason, uma Medeia para condutora na empresa, entendi que so a arte cabalística me daria o fio preciso para me tirar deste labirinto.
"Cabala ou Kabbala, é palavra hebraica que significa Recepção; deriva--se da raiz Kibbel, que vale o mesmo que Entregou ou Ensinou. Da Cabala se verificam estas duas etimologias de Recepção e Entrega; porque como antigamente Cabala era ciência que se ensinava sem livros e sem escritos e só por secreta locução se comunicava ... Entre a Cabala dos antigos e moder­nos Hebreus vai grande diferencia. A Cabala dos antigos Hebreus era a soberana e misteriosa doutrina que Lhes fora comunicada por Moisés. Em confirmação desta verdade, diz Célio Rodigínio que no monte recebera Moisés duas leis, urna literal, que ele por mandado de Deus escrevera e fizera patente aos olhos do Povo; outra espiritual, que ele revelara a setenta dos anciãos e sábios daquela nação e sucessivamente a alguns outros, para que de pais para filhos se fossem com discreta suavidade propagando os mistérios daquela sublime doutrina, a qual se chamava Mercava, que quer dizer Ciência do Carro, cujo objecto era o mundo intelectual.

"Com esta secreta comunicarão, foram os filhos herdando de seus pais os inestimáveis tesoiros de urna divina ciência; e não só os Hebreus mas também entre Caldeus, Petagóricos e Druidas (antigos filósofos da Gália) pelo espaço de muitos séculos sem escritos nem livros, se foram ocultamente insinuando nos ânimos humanos umas notícias que com vocábulo grego foram chamadas Agrafa e ainda hoje com sua noção originária conservam! o nome de Cabala; mas como com o tempo se perverte e deprava tudo, no entendimento dos doutores hebreus insensivelmente se foram apagando as luzes daquela tão misteriosa como oculta ciência e assim como a curiosidade intemperadas e mal regulada faz degenerar teólogos em heresiarcas, astrónomos em astrólogos judiciários, dialécticos em sofistas, filósofos naturais em alquimistas, etc., assim com o curioso excesso de licenciosas especulações se foram os doutores hebreus desfazendo em pomposas futilidades, a que eles chamam Alegorías, donde Lhes veio a eles o nome de Cabalistas Alegóricos ou Alegorizantes.
"Para estes Cabalistas acreditarem o inutilíssimo estudo de suas can­sadas alegorias, deram a entender aos seus sequazes que o sentido Ale­górico das Escrituras é muito superior ao literal; porquanto este é prático, está embarazado com circunstancias do lugar e do tempo; mas o sen­tido Alegórico (como especulativo) levanta a alma das matérias tempe­ráis e celestes, e eternos objectos, que como tais são imagens e espelhos da Divina imutabilidade. Finalmente, das Alegorias declinou a Cabala para a observação das letras, na qual depois de muito trabalho, entre muitos nadas, apenas se achara alguma substancia ou noticia digna de estudiosa curiosidade.
"Divide-se esta última Cabala em três. Gametria, Notárica e Ternura; a Cabala Gametria declara as palavras pelas transposições das letras; a Cabala Notárica, de cada letra faz urna palavra inteira, ou explica urna palavra por outra que contém o mesmo número; e Cabala Ternura, a que outros chamam Ziruph, consiste na troca das letras, que em certas combinações se fazem equivalentes a outras.
"Para o meu intento não podiam servir as duas últimas Cabalas, Notárica e Ternura, porque as letras do Cálice são muitas e ordinaria­mente as ditas duas Cabalas só se usam para encobrir o sentido de poucas letras, como constará dos exemplos que se seguem.

Do segundo verso do salmo terceiro, aonde lemos Multi insurgunt adversum me escolhe a Cabala Notárica esta primeira palavra Multi, e adiando que na língua hebraica está escrita com R, B, I e M, depois de varias especulações assenta que os ditos quatro caracteres sao as letras iniciais dos nomes de quatro nações; de sorte que R, significa Romanos, B, Babilonios, I,Jonios id est Gregos, e M, Medos. Em poucas letras poderá esta Cabala Notárica ter algum uso; e achamos que dela se valeram os Romanos em epitáfios e outras inscrições; tanto assim que ainda hoje são célebres no Mundo as quatro letras S.PQ.R., cujo sentido (como todos sabem) era Senatus Populusque Romanus ... Pelas regras desta própria Cabala achou um curioso nas quatro letras do nome Adam as qua­tro letras iniciais das quatro partes do Mundo, na letra A, Anatoli, que em grego quer dizer Oriente; na letra D. Dysis, que quer dizer Ocidente; no segundo A, Arctos, que vale o mesmo que Norte; e na letra M, Mesembria, que vale como Sul ou Meio Dia; e assim com misteriosa brevidade o nome do primeiro monarca é urna cabalística indicação das quatro partes do seu Império.
"A esta Cabala Notárica se pode reduzir outro significado de letras, segundo o valor que elas têm nos outros alfabetos de diferentes idio­mas, particularmente naqueles em que cada letra é dicção inteira, como no alfabeto hebraico Aleph, Beth, Dalet, Ghimel, etc., como também no alfabeto grego, Alpha,, Vita, Gamma, Delta, em muitos outros idiomas se podem formar orações inteiras com duas ou três letras do seu alfabeto ... os Caldeus chamara ao^4, Elpha, os Siriacos, Olaph ouAlyn; os Árabes, Turcos e Persas dizem Aliph; os Egipcios Athomus; os Etíopes Alph; os Armenios, Aip; os Esclavões, Alemoxi, e assim sucessivamente ... Aluph v.g. ou Aleph, que é o A dos Hebreus, quer dizer príncipe, e por isso a escolheram para cabera do seu alfabeto e como princesa das suas letras ... o Alpha dos gregos, na linguagem dos Tísios, é o mesmo que Boi e como no tempo que lançava Cadmo os fundamentos de urna cidade na Beócia topou com boi, quis o dito Cadmo que o nome deste animal precedesse todas as demais letras, chamando ao Alpha, quanto mais que na estimação daqueles Povos pelas grandes utilidades da agricultura era o boi o príncipe dos animais do campo ...
"Na segunda Cabala, a que chamara Ternura ou Ziruph achei ainda menos de que aproveitar-me do que na primeira ... A Cabala a que os Hebreus chamam Gametria é uma transposição de letras da qual nascem palavras distintas e significativas ou palavras que, unidas em oração, fazem sentido, v.g. no Cap. 20 do Éxodo, vers. 23, aonde diz a vulgata Praecedet que te Ángelus meus em lugar de Anjelus, diz a versão hebraica, Malaché e na transposição anagramática das letras deste nome acharam os Cabalistas que Malaché faz Michael; com este fundamento pretendem que o Anjo em que fala a Escritura, no dito lulgar, seja S. Miguel".
Mostra-nos depois o nosso autor numerosas interpretares que têm sido dadas as letras do Cális.
"O Padre Malebranche, varão doutíssimo da Congregarão do Oratório de París, no seu livro de Álgebra mostra que das vinte e quatro letras do alfabeto se pode fazer um milhão trezentas noventa e uma mil setecentas e vinte e duas centenas de centenas de milhão, cento e duas mil e mais combinações
I 391. 721. 658. 311. 264. 960. 263. 919. 898. 102. 100*
"Na minha opinião, ninguém até agora soube quantas línguas há no Mundo; nem creio que daqui em diante se saberá o número delas, prin­cipalmente depois que, pelas notícias do Brasil, dadas a luz pelo padre Simão de Vasconcelos, da Companhia de Jesus, sabemos que só nas praias do rio das Amazonas se falam mais de cento e cinquenta diferen­tes linguagens, e essas (segundo afirma o padre António Vieira) tão diversas entre si como a nossa da grega. Com estas cento e cinquenta linguagens ajunta a nossa imaginado outras muitas centenas de línguas, espalhadas por todas as nações do Mundo, e com admiração perguntaremos qual é o fundamental e construtivo principio de tantas falas?
"Sim, em que oficina se lavraram tantas imagens e retratos do conceito, tantos liames de oração e sonoros vínculos do discurso? De que guarda-roupa saíram tantas alfaias da retórica, tantos enfeites e preciosos adornos da eloquência? Qual foi a mina das riquezas e qual foi o jardim das flores do hebraico, do grego e do latino idioma? A que ar­quitecto deve o italiano a traga das suas cortesãs e políticas expressões?
Qual Ninfa ou Musa inspirou ao francês a suavidade da sua locução? Qual foi o severo e duro guerreiro que armou na Germânia marciais e medonhos vocábulos? Que príncipe, que potentado entronizou em Portugal e Gástela os termos de uma grave e majestosa facúndia? Final­mente, que materiais tomaram os Chins, os Japóes, os Árabes, Turcos, Persas, Mogores, Armenios, Malabares, Chingalés, Malagates, Negros de África, gentíos de América e todas mais nações da progénie humana para a fábrica de termos significativos de suas práticas, negociações, comércios, ofícios, guerras, batalhas, artes, ciências, ritos, cerimónias, idolatrias e sacrifícios?
"Neste vastíssimo oceano literário de palavras emanadas de diferen­tes combinações literárias, entram como rios no mar outros inumeráveis vocábulos dos nomes das pessoas e sobrenomes ou apelidos das famílias, como também as vozes dos dialectos de todas as línguas, os quais são modos de falar da língua principal do reino ou estado, como na língua grega os dialectos Ato, Eólico, Dórico, Corintio e Comum ; na língua italiana o Genovés, o Bergamasso, o Veneziano, o Napolitano, o Siciliano, etc.; na língua francesa o falar Picardo, Gascáo, Provencal, Normando, etc., e em Portugal as palavras particulares e próprias da Beira, Minho, Alentejo e Algarve, etc., nestes e noutros inumeráveis dialectos formam as letras do alfabeto outra classe de vozes diversas daquelas línguas matrizes e todas juntas formam urna inefável variedade de vocábulos".
O nosso autor, depois de divagar, afastando-se do assunto, volta a ele e conclui que a significação das letras do Calis é esta: "Hic est Calix sanguinis mei, novi, et aeterni testamenti, qui pro vobis et pro multis effundetur Joakim Kludphik fudi, Bolduk A. Dom. Mil CLXXXVII».

Das pessoas sepultadas neste mosteiro, pode dizer-se que só pude colher informes interessantes sobre D. Pedro e D. Inês de Castro. Vamos tentar dar um resumo da história deste para tão celebrizado, e depois despedir-se-mos de Alcobaça

Contíguo ao transepto da igreja pertencente a este convento, existe um mausoléu gótico, em pedra talhada, ao centro do qual estão dois sepulcros magníficos, em mármore branco, contendo os restos mortais de D. Pedro I, rei de Portugal, e de D. Inês de Castro, sua mulher85.
A respectiva figura em tamanho natural, está colocada sobre cada sepultura: Ele, representado com longas barbas, aspecto severo e em atitude de desembainhar a espada. Ela, com um aspecto de tocante inocência, veste trajos reais e está adornada com um diadema.
Poucas são as figuras históricas mais celebradas pelos escritores dra­máticos do que esta princesa. Existem cinco tragédias inspiradas na sua infeliz historia: 2 em inglés86, 1 em francés87, 1 em espanhol88 e 1 em portugués89. A última é, por certo, a que mais se assemelha a verdadeira historia e não é inferior em mérito poético. O seu autor, Nicolau Luís, não precisou de recorrer a fantasia para emocionar o público90.
Os factos reais são suficientes para provocar a piedade e o terror e mostrar até que ponto o amor pode influir na alma humana.
O caso conta-se assim: D. Pedro, filho de D. Afonso IV, rei de Portugal, e herdeiro da coroa, apaixonou-se por urna dama da Corte, D. Inês de Castro, pensando que seria ela a adorável pessoa que poderia partilhar com ele a coroa que o esperava. Possuía ela todos os encantos de beleza e as maneiras mais graciosas e delicadas. O príncipe desprezando todos os preconceitos de nascimento e fortuna, foi casado com ela pelo bispo da Guarda.
Apesar de todo o segredo de que foi rodeada a celebrado do matrimónio, a noticia chegou aos ouvidos do rei, que já tinha premeditado casar D. Pedro com a filha do rei de Castela.
Quando D. Afonso quis certificar-se do que Ihe constava, D. Pedro conhecendo as intenções do pai, entendeu ser mais prudente ocultar-lhe a verdade.
A nobreza, conhecedora do casamento e invejando D. Inés, pela preferência que Ihe concederá D. Pedro, aproveitou todas as oportunida­des para a apresentar como uma mulher vulgar e ambiciosa pressagiando as mais funestas consequências a advir desta aliança. Condenaram também o príncipe, como filho desobediente e irreflectido.
O rei, homem de fraco entendimento, deu ouvidos a calúnia e deixou influenciar-se a tal ponto que resolveu assassinar a desditosa prin­cesa. No propósito de perpetrar tão horroroso gesto, fez-se acompanhar de três dos seus cortesãos e de um numeroso grupo de homens arma­dos.
Residia D. Inês, nessa época, em Coimbra, no palácio de Santa Clara, onde passava urna vida recolhida educando os filhos e cumprindo os seus deveres de esposa.
O príncipe infelizmente estava ausente, numa caçada, quando che­gou o rei e a sua comitiva. A encantadora vítima saiu ao seu encontro com os seus dois filhos, que se Lhe não desprendiam dos joelhos e choravam em altos gritos.
Ela prostrou-se aos pés do monarca e, banhada em lágrimas, pedia--Ihe misericórdia e piedade para os seus filhos, aceitando que a exilasse para o mais remoto deserto onde ela pudesse viver para a educação daquelas crianças.
O instinto da Natureza travou-lhe o braço já erguido para Ihe mergulhar o punhal no peito; mas os conselheiros não o deixaram fraquejar no seu intento, e censurando-lhe o desprezo pelos interesses da Nação e convencendo-o da necessidade da morte de D. Inês, fizeram-no voltar a sua primeira resolução, ordenando-lhes que a matassem. A esta ordem, sem atenderem as lágrimas da inocência e da formosura, mataram-na instantaneamente.
Pouco tempo após este episodio, chegou o príncipe, mas ai! encontram, já fechados pela morte, esses olhos que sempre o esperavam im­pacientes. O espectáculo da sua amada Inês banhada em sangue encheu-lhe a alma de desesperada loucura e acordou nela todos os sentimentos de vingança. Na angústia da sua dor, pedia a Deus, em altos gritos, que castigasse os monstros que Lhe haviam roubado quanto de mais caro tinha sobre a terra.
Logo que o corpo de Inês foi sepultado, chefiando um exército de homens que o apoiavam, atravessou as províncias mais próximas, destruindo a ferro e fogo os bens dos assassinos. As tropas reais não se Lhe puderam opor e fugiam em debandada perante os vingadores da inocência.
Só o rei, desgraçado homem!, não podia fugir de si próprio. Os gri­tos dos netos não deixavam de Lhe ecoar nos ouvidos, e a imagem ensanguentada da desditosa mãe apresentava-se-lhe constantemente diante dos olhos. Por fim apiedou-se dele a Morte. Expirou mergulhado no arrependimento dos seus crimes. Fora um filho desobediente, um mau irmão e um pai cruel.
D. Pedro subiu ao trono com 37 anos de idade. Logo que obteve o poder, o seu primeiro pensamento foi vingar a morte da sua adorada Inês. Os três principais assassinos, Pero Coelho, Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves, tinham fugido para Castela, antes ainda da morte do rei.O príncipe ordenou que fossem processados por alta traição e, tendo sido provada a culpabilidade, confiscou-lhes os bens. Depois conseguiu a sua captura, em virtude de acordo com o rei de Castela, em que ambos se comprometiam a fazer entrega de fugitivos portugueses e castelhanos que tivessem procurado asilo nos seus respectivos domínios. Gonçalves e Coelho foram algemados e enviados para Portugal, enquanto que Pacheco fugiu para França.

Encontrava-se o rei em Santarém, quando Lhe apresentaram os cri­minosos. Ordenou que preparassem um banquete e, junto do local onde este se deveria realizar, mandou acender urna fogueira. Quando os assassinos já agonizavam no meio das maiores torturas, e antes de serem lançados as chamas, foram-lhes arrancados os corações, a um pelo peito, e a outro pelas costas. Foram por fim lançados as chamas, que reduziram os seus corpos a cinzas, e foi perante este espectáculo que D. Pedro se banqueteou.
Apaziguada assim a sua sede de vingança, ordenou que por todo o reino fosse anunciado o seu casamento com D. Inés.
Foi retirado o seu corpo da sepultura, coberto com as vestes reais, e colocado num sumptuoso trono, em volta do qual se reuniram os mi­nistros rendendo homenagem a sua verdadeira rainha.
Depois desta cerimónia, fez-se a trasladação do corpo, de Coimbra para Alcobaça, com uma pompa até ai jamais vista no reino. A distância que separa estas duas terras é de 52 milhas e, no entanto, durante todo o trajecto a estrada foi ladeada de povo, empunhando tochas acesas. Ao funeral assistiram todos os nobres cavaleiros de Portugal, trajando luto, acompanhados pelas esposas, também de negro e com longos véus brancos.
A nuvem que esta tragédia trouxe ao espírito de D. Pedro nunca se dissipou totalmente, e como viveu sempre em celibato o resto da vida, nada o fez esquecer o destino da sua amada esposa. A impressão que a sua morte Ihe causou ficou bem caracterizada, não só pela tortura que infligiu aos seus assassinos, mas em todos os actos da sua administração. A sua severidade induziu alguns a cognominá-lo de Pedro, o Cruel. Outros cognominaram-no de Justo. E, vendo bem, parece ser este último o mais apropriado.
Temos, no entanto, de convir que castigava alguns erros com dema­siada severidade, principalmente os casos de adultério. Em todas as transgressões desta natureza as suas leis eram mais severas que as de Solón, como se pode verificar por estes exemplos: mandou enforcar um homem que tivera relações com uma mulher antes de casar com ela e um outro foi lançado á fogueira por ter sido apanhado em flagrante adultério com a sua amante. Também um frade que se descobriu ser o pai de um rapaz que ferira o homem que o adoptara, foi metido numa caixa de madeira e serrado ao meio.
O que mais surpreende é ter sido D. Pedro culpado do mesmo crime pelo qual sentenciava tão ignominiosas mortes como castigo. E é isto um facto: provam-no os seus amores com D. Teresa Lourenço, de quem teve um ilustre filho, D. João o fundador da Batalha.
No entanto, a sua forma de punir outros crimes era menos condenável. Por exemplo: um cavaleiro, tendo pedido emprestados alguns utensílios de prata recusou-se depois a entregá-los ao dono. Este, vendo que todos os meios de que dispunha eram ineficazes, apelou para o rei, que obrigou o cavaleiro a entregar tudo, ficando a responder pela vida do queixoso.
O clero, que até então só podia ser processado pelos tribunais eclesiás­ticos, passou a ser julgado pelos tribunais de Justiça e punidos os réus com a morte, quando os seus crimes fossem grandes. Tendo-lhe sido solicitada uma vez a revisão da sentença de um desses criminosos e a permissão de ser enviado a um tribunal superior (o do Papa), respondeu calmamente: "Sim, enviá-lo-ei ao mais alto de todos os tribunais, ao de Deus".
Para evitar litígios fastidiosos e suas funestas consequências, desembargou a Nação de advogados, limitando a sua acção de tal modo, que em poucos dias ficava resolvido um processo.
Quando o juiz era culpado de suborno, como uma vez aconteceu, mandava-o enforcar imediatamente.
Em resumo: a implacável justiça e o zelo infatigável em combater os vícios atingiram um tal ponto, que nem consideração por hierarquias, fortuna ou privilégios particulares defendiam o criminoso da espada da justiça. Os enormes serviços que prestou ao País durante 10 anos que reinou, deixaram um vínculo do espírito dos portugueses. Costumam até dizer: que “ D. Pedro ou nunca devia ter nascido ou não devia de ter morrido.”

terça-feira, setembro 28, 2010

1873: Alcobaça e Alcobacenses vistos por um autóctone

Foto de Francisco Zagalo



O texto que abaixo publico é um extracto de um livro singular, que considero dos mais interessantes que se escreveram sobre Alcobaça após a saída dos monges, e que é pouco conhecido pela maioria das pessoas da terra.
Na sequência dos Olhares de Estrangeiros em tempos idos sobre Alcobaça, que venho publicando conforme a minha disponibilidade, decidi incluir a visão de um nosso conterrâneo, por ser actual em alguns aspectos e demonstrar como Alcobaça se mantém parada no tempo. É um olhar cirúrgico que deveria fazer reflectir.
O conterrâneo em causa é Bernardino Lopes de Oliveira. Um nome conhecido, mas que poucos saberão quem foi ou o que fez.
Antes de prosseguir esta introdução do meu comentário, devo dizer que o extracto é retirado do livro a “ História da Misericórdia de Alcobaça”, publicado em Alcobaça em 1918, oito anos após a morte do autor, Francisco Zagalo. Um destacado médico proeminente da vida social e cultural de Alcobaça no virar do S. XIX para o S. XX, cuja memória foi perpetuada na toponímia da povoação. Precisamente numa artéria que nunca mais tem os melhoramentos anunciados vezes sem fim pelo elenco camarário, como remate que falta na configuração do terreiro que foi feito em frente ao mosteiro.
Bernardino Lopes de Oliveira tem também o seu nome na toponímia de Alcobaça, e como outros alcobacenses abastados do século XIX, deixou-nos uma enorme casa, que é em termos arquitectónicos uma das mais significativas da povoação no panorama da arquitectura da terra. De linhas sóbrias e estilo neoclássico tardio, está longe do género abrasileirado e neocolonialista, tão típico e adoptado por alguns novos-ricos de então, como se podem ver exemplos na povoação. Bernardino Lopes, não optou pela ostentação, apesar de ter sido emigrante de sucesso no Brasil, onde amealhou uma fortuna considerável.
Pela sua experiência vivida no estrangeiro e por um cosmopolitismo que demonstrou em atitudes políticas posteriores, quis dotar Alcobaça de um ar moderno, longe daquele que o chocara numa viagem para matar saudades da terra e que era do mais atrasado. Custou-lhe ver o aspecto das pessoas e das casas da povoação, que eram da “mais repugnante decadência” e o “estado intelectual e moral dos moradores (…) em geral ignorantes e grosseiros”. Mais tarde, quando decidiu voltar para Alcobaça, insere-se na vida social, cultural e política da terra, promovendo actos e associações, onde se destacam a antiga “Associação Recreativa Clube Alcobacense” e o “Clube de leitura” anexo a ela. Promoveu o teatro, foi provedor da Misericórdia, vereador da Câmara e seu presidente em 1873. A ele se deve, enquanto provedor da Misericórdia, a iniciativa da construção do Hospital que tem o seu nome. Esta é uma das maiores infra-estruturas sociais de que alguma vez se dotou a terra após a saída dos monges.
Na vida política cedo se empenhou em resolver os problemas que impediam a povoação ter uma imagem condigna com os seus pergaminhos. Entre esses problemas, ele considerava ser a pouca urbanidade dos seus habitantes, a sujidade que se via a cada passo pelas ruas, a maledicência, os vícios da influência na politica, o interesse mesquinho e o amiguismo, que deturpavam a coisa pública, já que uns quantos beneficiavam do município em detrimento dos demais.
Apesar dos anos decorridos, esta última realidade ainda não foi banida da terra, e o aspecto de povoação abandonada e decadente continua. São bem visíveis por todo o lado, nos imóveis e lojas, tabuletas e cartazes a anunciar “trespassa-se”, “vende-se” ou “aluga-se”, como se não se quisesse viver por aqui ou quisessem abandonar o lugar. As tabuletas que adornam janelas, portas, varandas , montras… dão um ar pitoresco à terra e os mesmos dizeres quando são pintados directamente nas paredes dos próprios edifícios, à mão livre, tornam-se mesmo patuscos. Suponho até que a Câmara irá brevemente promover um concurso sobre “ o slogan mais bem pintado” ou “ o lugar mais imaginoso para se expor uma tabuleta". Tudo com direito a um subsídio e um júri composto pelo PS e a CDU, as associações de defesa do património e os “defensores do mantenham isto assim”. A esta imagem da vitalidade local, juntam-se ainda as muitas casas e paredes em ruínas e leprosas, escaqueiradas, que se vêem a cada passo na povoação e que servem, nalguns casos, de mictórios e outros propósitos afins, e onde abundam dejectos, lixo, maus cheiros, ratazanas e bicharada rastejante que promovem uma vida salubre e atraente para quem vive nas imediações ou passa por lá, especialmente crianças e idosos.






Mas como no presente, a vida política em Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira, não seria o melhor meio para alguém de bem ajudar uma terra a prosperar e a elevar o sentido crítico dos seus conterrâneos. Bernardino Lopes de Oliveira, além de dotar o governo da edilidade de um pragmatismo, até então inexistente, e que muniu as contas públicas de racionalidade, como atestam as actas da câmara no período em que a presidiu, tomou ainda decisões importantes, mas não corrigiu os vícios existentes numa cultura politica , que por simpatia não é muito semelhante à de hoje.
Por isso, apesar do enorme prestígio que desfrutou na condução da coisa pública, não foi o suficiente para ser eleito num segundo mandato, ficando impossibilitado de continuar projectos já delineados que dotariam Alcobaça de outro Glamour que continua a não possuir.
Quem sucedeu a Bernardino Lopes de Oliveira, fez precisamente o contrário, como é costume à boa maneira das oposições TUGAS, paralisou projectos e montaram-se clientelas “ com favores concedidos à custa do cofre municipal”, como chegou a afirmar.
Alcobaça parece dar-se mal com gente séria, altruísta e de visão, onde se favorece politicamente, a manha e o interesse opaco.
Quanto à falta da crítica avisada, a tanto almejava Bernardino Lopes, ela continua a não existir, senão não teríamos ouvido quase 150 anos depois, Augusto Mateus afirmar: “Alcobaça não tem massa crítica necessária” (in RC 27/9/2007).


1873: Alcobaça e alcobacenses vistos por um autóctone





Rossio de Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira
Igreja Nova ao fundo, desmantelada em 1915
No seu lugar existem os actuais CTT.

"De há muito que se vinha reconhecendo a insuficiente capacidade do hospital, e nos últimos anos os progressos nosocomiais o haviam condenado sob o ponto de vista higiénico.
Foi o que determinou a comissão administrativa da Misericórdia em 6 de Janeiro de 1875 a deliberar pedir ao Governo a concessão da parte norte-nascente do Mosteiro junto da livraria, para ai se instalar o hospital, e no dia 1 de Fevereiro do mesmo ano pedir antes para o mesmo fim a livraria e suas dependências.
Foi pelo mesmo motivo que a comissão administrativa da Misericórdia em 23 de Novembro de 1883 deliberou mandar proceder a estudos para se fazer mais urna enfermaria no celeiro.
Nem a livraria foi concedida, nem a enfermaria foi feita.
Em 1884 foi criado e colocado em Alcobaça o regimento de cavalaria nº. 9 e isso determina uma tal afluência de doentes que, apesar dos doentes civis não serem recolhidos no hos­pital e serem tratados no domicilio, estava o hospital sempre pejado e por vezes tão acumulado com adicionamento de leitos suplementares nas enfermarias e ocupados todos os seus compartimentos, inclusive a capela, que foi profanada, que as suas condições higiénicas se tornaram péssimas e ameaçavam determinar dum momento para o outro alguma catástrofe pa­vorosa.
Ponderado isto pelos médicos e reconhecido pelos irmãos de cápela no seu exercício de enfermeiros-móres, a comissão administrativa, não podendo aproveitar o antigo celeiro, já transformado cm habitação dos enfermeiros, resolve na sua sessão de 2 de Janeiro de 1886 adquirir os materiais necessários para a construção duma enfermaria no quintal do hospi­tal e proceder a essa construção por administração.
No sessão extraordinária de 18 do mesmo mez e ano os facultativos do hospital, consultados pela comissão, foram de opinião que a enfermaria projectada ia agravar as más condições higiénicas do hospital e com ela se ia desperdiçar urna quantia que faria falta ao construir-se um hospital novo, sem em nada valorizar o edifício hospitalar quando vendido a um particular, sendo este o destino que se Ihe devia dar, quando fosse possível, pois que, sendo urna boa casa de habitação para uma família, era péssima para hospital. A mesa deliberou, pois, sobreestar na construção da enfermaria projectada e incumbiu os facultativos de Ihe indicarem os requisitos a que devia satisfazer o hospital a construir.
Era o ponto em que estava tão momentoso assunto quando entrou em exercício em 19 de Julho de 1886 a comissão admi­nistrativa que Bernardino Lopes de Oliveira começou a pre­sidir em 3o de Agosto.
Esse assunto havia saído da área restrita da mesa administrativa da Misericórdia para o largo âmbito do publico, que conseguiu interessar, pelo que ele importava á sorte dos des­validos que a todos condoía.
Todos lamentavam que os desventurados torturados pela miséria e pela doença se vissem privados, pela pouca capacidade do hospital, de aproveitar o seu conforto e a metódica e solicita aplicação dos medicamentos e da dieta ai feita para mais facilmente recobrarem a saúde e tornarem-se cidadãos validos, amparo de sua família indigente, e que, quando lá internados, Ihes proporcionasse condições desfavoráveis á rá­pida restauraçáo da vida e da saúde. Anteviam, pois, a necessidade impreterível de se proceder imediatamente á construção dum hospital que, pelo local onde fosse situado, pela sua ampla capacidade, grande cubagem e franca ventilação, podésse comportar todos os doentes que necessitassem internar-se nele e lhes facultasse a higiene promotora do seu rápi­do restabelecimento.
Mas a modéstia dos recursos da Misericórdia que Ihe permitia, quando muito, custear o tratamento e curativo dos doentes, fazia arredar a ideia de o construir á custa do seu fun­do permanente que, por esse modo desfalcado, não daria posteriormente rendimento suficiente a custear o tratamento dos doentes. E não devia pelo presente sacrificar-se o futuro, ori­ginando embaraços permanentes e irremediáveis. Devia, pois, proceder-se á construção com receita estranha ao fundo per­manente da Misericórdia: com subsídios do Estado e com do­nativos particulares. Subsidio do Estado em madeiras do pinhal nacional antevia-se a possibilidade de o alcançar suficien­te, mas alcancar da subscrição particular a quantia de réis 6.ooo $ooo, em que a modesta aspiração dos que mais desejavam a pronta realização de tão momentoso e urgente melhoramento cifrava indispensável para o efectivar com as madei­ras, concedidas pelo Estado, é que se julgava ser quantia muito superior á que era de esperar produzisse a subscrição em terra tão pequena como Alcobaça. Demais afigurava-se que esta seria muito modesta, apesar dos mais acendrados sentimentos de altruísmo que animavam os moradores de Alcobaça e da sua relativa opulência, por a orientado até ai dada á administração da Misericórdia, tornada um joguete das facções políticas, suscitar nos alcobacenses sobressaltada desconfiança.
Assim os mais devotados propugnadores da breve realização desse melhoramento viam-se enleados na mais invencível impotência e limitavam-se a aguardar numa anciosa espectativa por que se clareasse o horisonte muito obscurecido por nuvens caliginosas, sem anteverem algum vento impetuoso e benéfico que as dissipasse.
A entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia fez entrever um clarão de esperança que alentou as almas bem formadas e as aprestou a entrarem em campanha, na mais gloriosa e benéfica das campanhas, quando se ensejasse ocasião oportuna.
Necessitamos tracejar em rápido escorço a biografia de Bernardino Lopes de Oliveira para compreenderem, os que o não conheceram, a razão por que a sua aparição na administração da Misericórdia suscitava tão lisonjeiras esperanças.
Bernardino Lopes de Oliveira, nascido em 4 de Novembro de 1832 de pais sem fortuna, que proviam as necessidades da família numerosa com o mais áspero e duro mourejar, foi de Alcobaça, sua terra natal, para o Brazil em Agosto ou Setembro de 1847, em idade de 14 anos. Mal sabia ler e escrever e ainda não havia recebido sequer as primeiras noções duma profissão que o habilitassem a grangear a própria subsistência. Levava consigo um dote precioso que foi sempre o traço sa­liente e predominante do seu carácter. Lograva urna energia inquebrantável, uma vontade de ferro, que o empenhava sem uma vacilação, sem a sombra sequer duma hesitação, na realisação dum propósito que tinha em mira, prosseguido sempre tenazmente, aproveitando as circunstancias favoráveis e não desalentando com as adversas, até á sua consecução final. Parecia convicto e demonstrou cabalmente que querer é poder.
Foi, pois, para o Brazil, para o Recife, com o proposito de conseguir uma fortuna que Ihe permitisse viver desafogadamente e proporcionar igual desafogo aos seus, que estremecia, e cujo penoso viver o angustiava.
Desprovido de habilitações e sem protecção que o recomendasse, considerou-se feliz em ser admitido como marçano em um estabelecimento comercial. A sua submissão paciente aos mais duros encargos, a morigeração do seu proceder austero e impecável, e a Ihaneza e afabilidade prodigalizada aos fregueses em breve Ihe captaram a simpatia dos caixeiros e do patrão. Assim foi ascendendo com relativa rapidez a caixeiro e a sócio, e de sócio a comerciante independente.
Com as suas eminentes qualidades pessoais e com os su­bidos créditos que ele lograva na praça e que Ihe atraíam nu­merosa e valiosa freguezia do sertão, em poucos anos conseguiu ver realizado o seu almejado sonho. Aos trinta anos possuía já fortuna avultada.

Vem então, em 1862, pela primeira vez a Portugal, a Alcobaça, a matar saudades que o pungiam acerbamente, mas que ele havia comprimido emquanto não viu próximo da com­pleta realização o seu ideal.
Aquí, comparando as impressões indeléveis que a sua infância Ihe havia vincado na fantasia poetisadas pelos tons ró­seos da saudade, com a realidade, sofre uma cruel decepção. A vila de Alcobaça, outrora desdenhada pelos frades que só se preocupavam com a sua vivenda colossal e principesca, e pouco melhorada pelos que se Ihes seguiram no domínio e que só procuravam disfrutar o rendimento das esplendidas propriedades que os frades haviam fertilisado com o seu suor em outros tempos e ultimamente com a mais avançada cultura, estava um verdadeiro chavasca! Os prédios de arquitectura mesquinhamente tacanha, descurados, mal caiados, ofereciam o espectáculo da mais repugnante decadência, e as ruas da terra mal nivelada ou mal calcadas e o seu grande largo situado ao cen­tro, sem calcetamento, com o solo desigual cortado de bastantes gibas entremeadas de covas que, durante o tempo invernoso, se transformavam em verdadeiros atascadeiros, e atravessado por uma longa vala onde corriam a descoberto as enxurradas da chuva que felizmente vinham de vez cm quando fazer a limpeza de toda a espécie de imundicie que a cada passo e sem repressão alguma para ali era arrojada, davam uma triste ideia do estado de civilisação dos moradores. A divagação constante pelas ruas da povoação de todos os animais, e o mercado dos cevados no centro e o pejamento nos dias de mercado do local a ele destinado com os burros em que se transportavam os moradores das povoações rurais numa mescla pitoresca com os bipedes, mescla perigosa pela liberdade que disfrutavam os quadrupedes e com as manhas algo agressivas que alguns haviam adquirido, completavam os característicos duma povoação sertaneja, absolutamente alheia ao progresso e á civilisacáo. E este aspecto deploravel da vila era completado com o do seu Mosteiro. Completamente abando­nado após a supressáo e evasão dos frades, a povoação caiu sobre ele como um bando de famintos e, arrebatando-lhe tudo o que precisavam ou erri que supunham algum valor ou que Ihc despertava a curiosidade. Tiraram, onde Ihe aprouve, portas e janelas e cantarias, e, emquanto os livros não foram removidos para Lisboa, também eles foram alvo das suas depredações, e com tal inconsciência, que não subtraíam livros que os ilustrassem ou tivessem alta valia literaria, levavam o que infantilmente os recreava pelas gravuras ou pelas iluminuras que os ilustravam, e tão estupidamente, que truncavam obras, levando um ou dois volumes, e deixavam ficar os outros. Patenteava-se, pois, o Mosteiro em ruínas, mas não eram as ruínas vetustas determinadas pelo decorrer dos seculos que Ihes imprime uma feição pitorescamente poética, e sim as ocasionadas pela atabalhoada e selvática acção demolidora, que Ihes da um aspecto repelente. O estado intelectual e moral dos moradores condizia com o da povoação, sua fiel imagem. Em geral eram ignorantes, de trato grosseiro, e muitos suspiravam ainda com infinda sau­dade pela época fradesca, em que por módico preço obtinham a farta pitança das rações que, pela abundância, os abarrotavam, e, por vezes, os deliciavam com as delicadas iguarias com que os brindavam pelas festas conventuais. A convivência, pelo menos a convivência estabelecida para a troca recíproca de ideias e impressões, era nula, a não ser no sexo feminino das famílias abastadas, que na singeleza mais simpática dedicavam as tardes, passadas ora na casa du­ma ora na casa doutra, á palestra amena e afectuosa, que não as distraía dos lavores domésticos de costura a que se entregavam. Os homens, constantemente entregues á sua faina, reuniam-se algumas vezes, quasi sempre raro á noite, nas boticas ou em alguma mercearia mais em voga, para se entregarem á caustica mordacidade da má língua, conspurcando e esfacelando as vidas alheias. Isto com relação ás classes mais ele­vadas pela sua hierarquia social ou pela sua abastança de meios de fortuna. Das outras classes, os homcns dedicavam o tempo que Ibes sobrava do exercício da sua profissão artística ou agrícola á palestra nas tabernas, aquecida com o largo con­sumo de vinho, e as mulheres o que sobrava dos cuidados do­mésticos em que sempre foram exemplares, ao cavaco do soalheiro implacavelmente dilacerante para os ausentes. A educação, que se ministrava, presume-se pelos hábitos dos edu­cadores, cuja manutenção consideravam o supremo ideal a atingir.
Foi profundamente amargo o desconforto que produziu em Bernardino Lopes de Oliveira o reconhecimento do estado material e moral da sua terra natal, e essa profunda impressão determinou-lhe, após alguns dias de meditação, uma das suas resoluções inabaláveis e de que coisa alguma o fazia de­sistir.
Resolveu regressar ao Brazil para liquidar em curto prazo os seus haveres ou orientar a administração da sua importante casa comercial de fazendas sem a sua assistência, e voltar pa­ra Alcobaça, estabelecendo aqui a sua residência, e empenhar a sua energia e a sua fortuna no levantamento do seu nível material, intelectual, social e moral.
Resolveu e fê-lo.
De regresso definitivo do Brazil em 1864 estabeleceu a sua residência nesta vila e imediatamente poz por obra o seu propósito.
Havia um teatro mal instalado no refeitorio do Mosteiro. Promoveu que ele fosse reformado tal como agora se acha, que fosse dotado de pano de boca e de scenario, e que os amadores dramáticos, alguns bem distintos, que aqui havia, e que davam raras representares, se organisassem, recrutando mais pessoal, de modo a darem duas representações por mez. Promoveu a organisacão de bailes de mascaras animadissimos, brilhantes, e em que se mantinha todo o decoro com o mais meticuloso cuidado, como em um baile realisado em urna casa particular da mais severa honestidade. E para os facilitar e tornar mais atraentes mandou vir abundante e selecto guarda-roupa de Lisboa, que franqueava gratuitamente. Promoveu e foi um dos socios fundadores da associação recreativa Club Alcobacense, e do Gabinete de Leitura, dando muitos volumes emquanto a sua biblioteca esteve mal provida.
Em 1878 começou a fazer parte da Camara Municipal, de que era presidente, e que quasí sempre se conformou com a orientação que ele deu á administracáo municipal. Proveu mediatamente ao poiicíamento da vila e principalmente dos seus mercados. Fez remover o mercado do gado suino do cen­tro da vila para o seu extremo e já fóra dela, para a Roda. E determinou que não fosse consentido animal algum a diva­gar pela vila. E que nos seus mercados não fosse tolerado burro algum parado, sendo recolhido apenas a ele chegasse e o respectivo cavaleiro desmontasse ou a respectiva carga fosse arreada.
E não eram estas medidas de pequeno alcance e de fácil execução, como agora se nos afigura. A primeira foi recebida tão agressivamente que aliciou os principais partidarios da vereação que Ihe sucedeu com o carácter de completa reaccáo as suas medidas. O mercado de gado suino ainda voltou para o centro da vila, onde pouco se demorou, tão fortemente o bom senso impulsionou a opinião publica, reprovando essa reacção barbara. A ultima providencia concitou um temeroso tumulto, promovido pelos moradores das freguezias rurais, o qual se aplacou sem consequências de maior, graças á serenidade e intrepidez de Bernardino Lopes de Oliveira.
Estudando a administrado municipal de Alcobaça reconheceu que ela estava em um perfeito caos. Os melhoramentos custeados pelo cofre municipal eram efectuados não por serem os mais úteis e urgentes, mas por lograrem a recomendação dum valioso influente eleitoral, e por vezes eles eram mais em proveito dos influentes do que do municipio. Propoz e a Cámara sancionou com o seu voto que se investigasse quais os melhoramentos de que o municipio estava carecido, se mandasse proceder aos respectivos estudos e á elaboração das plantas e correlativos orçamentos. Que depois fossem classificados pelo seu grau de utilidade e de urgência, e que se fossem executando pela ordem dessa classificação e em conformidade com a verba disponível e não ao grado das influen­cias que os solicitassem. Fez uma administração impertubavelmente justa em que teve conscjencia de mclhorar consideravelmente o aspecto das povoações do concelho c as suas condicóes higiénicas. Não fez mais porque urna grande parte da receita disponível foi dispendida com os trabalhos preparato­rios para a execucáo dos melhoramentos, trabalhos de que os seus sucessores não fizeram caso, porque não lhes conveio adaptar o plano racional a que ele subordinava a sequencía da gerencia administrativa. E, terminado o trienio, não foi reeleito, apesar do grande prestigio que o seu proceder austero e sensato Ihe havia grangeado, porque os corrilhos políticos, saudosos das cadeiras senatoriais, onde com favores concedi­dos á custa do cofre municipal grangeavam muitos prosélitos, não consentiram que ele Ihes inutilisasse as artimanhas, se-guindo inquebrantavelmente o plano adoptado e que, se fosse proseguido, levaría com certeza Alcobafa e o seu concelho a estado de maior adiamamento do que está.
Com estes precedentes a entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia era de molde a esperar-se a sua reconstituição e o travamento da sua inegável e rápida decadencia. Receava-se sómente que o resto da comissão, constituindo uma grande maioria, e constituido por in­dividuos filiados na faccáo política dominante, não assentisse ao seu modo de ver e tolhesse o desenvolvimento da sua no­toria actividade e energia. Felizmente, assim não sucedeu. Ou porque se deixasse subjugar e arrastar pelo seu grande prestigio, ou porque antecipadamente houvesse sido pactuado tal proceder, como condição indispensavel para que Bernardi­no Lopes de Oliveira aceitasse o cargo para que foi nomeado, o facto é que a mesa trabalhou sempre de acordo e na melhor harmonia com o seu presidente, colaborando eficaz e dedicadamente na execução das propostas dele, por ela aprovadas.
Bernardino Lopes de Oliveira toma posse cm 3o de Agosto e imediatamente, de acordo com a mesa, convida os indivíduos mais em evidencia pela sua posição social e pela sua fortuna para se reunirem na casa do despacho da Misericórdia. Nessa magna reunião, onde se achavam indivíduos de to­das as parcialidades políticas, cxpoz Bernardino Lopes de Oliveira as más condicões de capacidade e de higiene do hos­pital, que, por isso, era forçoso proceder á construção de um novo, mas que a Misericórdia, pela modestia dos seus recur­sos, não podia levá-la a efeito. Que podia aplicar-lhe algumas sobras do seu rendimento e a receita proveniente do edifício que estava servindo de hospital, e talvez conseguisse do Esta­do algumas madeiras do pinhal nacional, mas que tudo isso era insuficiente para o levar a cabo. Tal empreendimento só­mente seria realisavel com a coadjuva^áo dos habitantes de Alcobaca expressa em largos donativos. Por esse motivo ha­via convidado os cavalheiros presentes para dizerem o que Ihes parecesse a tal respeito.
A assembleia unanimemente reconheceu a necessidade da construção do novo hospital e prontificou-se a contribuir com donativos para ela, dando um voto de plena confiança á mesa para tratar de tal assunto, procedendo á referida construção e solicitando os donativos quando Ihe parecessc oportuno.

Em 3o de Setembro, em sessão de mesa com assistência do administrador do concelho, previamente convidado, Bernardino Lopes de Oliveira propõe que se construa o hospital na Roda em local indicado pelos facultativos, pedindo-se á Camara a concessão do terreno, e que se elabore a respectiva planta, a qual o administrador do concelho se incumbiu de apresentar; que para a referida construção se destinasse o sal­do das gerências anteriores, a verba no orçamento destinada á construção da projectada enfermaria no quintal do hospital e 5oo$ooo réis do fundo permanente e o produto da renda do edifício onde estava o hospital, pedindo-se autorização para se efectuar essa venda, e que a mesa solicite donativos. Fui esta proposta aprovada por unanimidade.
Em 3 de Novembro o vice presidente participa que, havendo em nome do presidente solicitado da Câmara Municipal a concessão do terreno para edificação do hospital, ela o havia concedido por unanimidade na sua sessão de 10 de Outubro.
Em 16 de Fevereiro de 1887 foi presente á mesa a planta do hospital de Lamego, resolvendo a comissão que fossem consultados os facultativos acerca dela.
Em 7 de Março informa o presidente que os facultativos são de opiniáo que a planta do hospital de Lamego logra to­dos os requisitos exigidos pela sciencia, mas não se acha pela sua sumptuosidade e vastidão de harmonia com a capacidade que deve ter o hospital de Alcobaça, nem com os recursos de que a Misericórdia poderá dispôr, e eram de parecer que a referida planta fosse enviada a um arquitecto e juntamente a nota da capacidade necessária e dos recursos ao alcance da Misericórdia, para ele elaborar planta adequada. Por unani­midade deliberou a mesa que assim se fizesse.
Em 4 de Abril aprésenla Bernardino Lopes de Oliveirá um esboceto do futuro hospital da sua lavra, esboceto que alcançou a aprovação dos facultativos. A comissão delibera que seja esse esboceto enviado a um arquitecto para o transformar tecnicamente em planta definitiva.
Em 16 de Junho são presentes á comissão dois esboços de planta do hospital elaborados pelo arquitecto, sendo um com rez-do-cháo e primeiro andar, e outro em um só pavimento, tendo ao centro um andar superior para acomodações dos enfermeiros, optando os facultativos por este. A comissão deli­berou mandar organisar a planta em conformidade com este ultimo esboço." Francisco Zagalo op.cit. pp 239 a 247.

segunda-feira, setembro 13, 2010

INSTANTE E VERDADE


No primeiro quarto do século XX apareceram na Europa os regimes de massas que encontraram uma oposição por parte dos individualistas do pensamento livre e solto. A “rebelião das massas” foi atacada com armas e palavras até ao último quartel do século passado e esses sistemas foram vencidos e substituídos por outros regimes de massas; neles estamos mas não temos consciência disso. Até à revolução soviética e à fascista italiana, as pessoas acreditavam que tinham ideias e propunham-se ter ideais. Eram movimentos muito fecundos em todos os domínios, literatura, política (artes plásticas, cinema e teatro).
Os séculos XIX e XX manejavam-se com ideias, pensamentos e interrogações. Os partidos, tal como as pessoas, tinham vida interior. No presente viver não é integrar-se no tempo, mas deixar-se atropelar pelos seus furacões: a gritaria do momento. O presente transformou-se em cenário de um show vertiginoso que oferece apenas duas possibilidades opostas. Uma é a anomia, a passividade e a renúncia à interpretação. A outra é a participação pela embriaguez acelerada. Presentes estáticos ou velozes, mas nunca caminhantes. Hoje abjuramos da memória e da previsão do futuro. Elevámos o instante a verdade única, no altar das pressas e do efémero, banalizando o seu culto à espectacularidade do nada, mas também e sobre tudo pela ausência de uma sincronia e um espírito que aspire a compreender o seu tempo. O caminhante do pensamento vê-se privado de caminhos a troco de ser tentado com auto-estradas (não é neutro o símile “ auto-estradas da informação”). O grande sonho da comunicação já não é a biblioteca, nem sequer a videoteca, onde era possível demorar-se para observar os caminhos andados e os trechos a recorrer, como muito bem explicou Regis Debray. Antepusemos a difusão das mensagens à informação das mentes, tudo em proveito da emoção instantânea procurada pela fusão da imagem-som. A Vídeo-Esfera vai abolindo em nome desse falso presente que é o “directo”, as velhas mediações simbólicas, (a palavra, o escrito) e com elas as abstracções, as ideologias, a politica e até as suas derivações institucionais (partidos, sindicatos, escolas). Agora interessa ver rostos e não identificar identidades. Assistimos aos factos sem registá-los na experiência. O pequeno ecrã (televisão/internet) é a verdadeira instância de uma nova aprendizagem. E a ilusão da presença criada pelo directo preenche toda a aspiração de sabedoria. Neste campo radical da civilização que Paul Virilio denominou “a estética da desaparição”, espreita um perigo sobranceiro para a liberdade individual e democrática do sujeito. O “directo” na sua pressa representa a negação do eu que observa, evoca e compara; actua como um dispositivo externo mas ordenador das nossas vidas, que já não logram subtrair-se à lógica do imediato. Poderia dizer-se que ocorre e ocorre-nos só quando vem referendada pela câmara que estava aí no preciso momento, submetida pelo jornal à tirania do último acontecimento, coadjuvadas pelo integralismo técnico de uns meios cuja máxima aspiração consiste em mostrar o poder da sua presença. Com isto os regimes actuais de massas, que utilizam a etiqueta de democracia, descobriram a forma de nos fazer crer que se escolhe e pensa livremente, por cima das televisões, da imprensa adquirida em toda a sua verdadeira classe. Como se a comunicação social fosse o espaço onde se constrói o comum e este tivesse aí o valor de realidade. Neste tipo de regimes, a personificação simplifica o mundo e converte os acontecimentos em algo imputável. Aquele é mau, o outro é bom e aquele o dono do mundo. Condensam-se os acontecimentos até reduzi-los a um homem, a uma paixão supostamente explicável, a uma grandeza personificada que se pode admirar ou a uma mesquinhez com a qual se excita a indignação colectiva como se tem visto ultimamente com ameaças da queima do Corão. in Jornal das Caldas

terça-feira, setembro 07, 2010

Alcobaça segundo Miguel Unamuno


Miguel Unamuno nasceu em Bilbau e morreu em Salamanca (1864-1936). Nesta última cidade passou o período mais fecundo da sua existência entregue à sua cátedra de grego na Universidade, onde foi reitor desde 1902.
Dotado de um espírito de dimensões excepcionais, cuja valorização se pode fazer com maior justiça à medida que passam os anos e vamos relendo a sua obra, é considerado nos meios académicos e desde há muito tempo, uma das mentes mais profundas e originais da Europa. A sua obra foi traduzida em diversos idiomas.
Em termos de escrita abraçou quase todos os géneros: ensaio, poesia, teatro, romance e filosofia, deixando em todos eles a marca da sua forte personalidade.
Amigo e admirador do nosso país, visitava-o com frequência e fez belas descrições da sua paisagem e da alma portuguesa. Conviveu com personagens de vulto da vida cultural portuguesa, como Teixeira de Pascoais, Guerra Junqueiro e Manuel Laranjeira, com quem passou algumas temporadas de férias em Espinho.
Na troca de correspondência com aqueles, desde cedo manifestou a intenção de escrever um livro sobre a Alma Portuguesa, pois interessava-lhe estudar nos portugueses o “tédio” e o “pessimismo patriótico” que dizia estarem encardidos na sua alma, tal como ainda vemos nos “opinionmaker” dos nossos dias. Mas é nos versos de António Nobre que encontra esse fatalismo tão bem expresso: “ Amigos, Que desgraça nascer em Portugal”. E de Portugal, disse que era um país de Suicidas. Camilo, Antero e Francisco laranjeira atestam-no, entre muitas outras coisas.
A amizade que teve com Guerra Junqueiro terá sido uma das portas que o levou a descrever Portugal e os Portugueses de forma tão singular, e alguém já teve a coragem de dizer que “as páginas que nos deixou sobre o País, são do mais profundo que se escreveu sobre Portugal”.
“ Por terras de Portugal e Espanha”, foi publicado pela primeira vez nos anos 90 do século passado, na língua de Camões, e na nota de introdução justifica-se o atraso nestas palavras, que denotam claramente o que foram as afinidades entre os dois países e por cá muitos ainda vivem congelados no ano de 1385: “ Se as relações culturais luso-espanholas tivessem a dimensão imposta pela proximidade geográfica, a historia politica e cultural com significativos pontos comuns e o interesse num profundo conhecimento recíproco, há muito que este livro, em que a alma de Portugal é olhada com paixão, circularia entre nós e na nossa língua como obra indispensável para se conhecer não só a nação que éramos quando ele foi escrito como o que somos hoje” .
Viajante e curioso como foi, também visitou Alcobaça e deixou uma descrição particular do mosteiro, do caminho por onde passou no Valado dos Frades, onde chegou de comboio, e da hospedagem onde pernoitou. Segundo a correspondencia entre Unamuno e Manuel Larangeira, o texto de Alcobaça foi publicado em Buenos Aires (Argentina), no Jornal la Nación em 1909.
Tentei ver se os jornais locais, em Alcobaça), do ano de 1908, faziam mençãoda sua visitou à povoação, mas foi inglória a intenção. Apesar de Unamuno ser uma pessoa muito conhecido em Espanha e Portugal (privava com o rei a quem fazia discursos e já era reitor da Universidade de Salamanca), nenhuma referência lhe foi feita, mas ao contrário deparei-me com as miudezas de uma terra onde não se passava nada, adormecida na nostalgia dos monges e parada no tempo, onde se pressentia o cacarejar das galinhas à solta pela rua , o chiar dos rodízios de carros de bois e se falava do sino da igreja badalar para anunciar que fulano tal e sua esposa… tinham chegado de Lisboa… transcendências!


Postal de Alcobaça com uma data próxima à data da visita de Unamuno
1906

ALCOBAÇA


Cheguei de Lisboa a estação de Valado, já de noite, e de Valado a Alcobaça levou-me uma pequena carruagem desconjuntada. Afastei o frio e a solidão, imagi­nando o que seria aquele caminho envolto então em trevas: por onde vamos?
E foi um formoso amanhecer de fins de Novembro, num verdadeiro Verão de S. Martinho, quando sai para ver o histórico mosteiro de Alcobaça, outrora convento de bernardos.
O arrebol da aurora dourava as colinas, quando eu ia direito ao mosteiro, a fachada de cuja igreja atraía o meu anelo. Esta fachada, severa, mas pouco significativa, abre-se para uma grande praga estendida a toda a luz e todo o ar. Ao entrar no templo envolveu-me uma impressão de solene solidão e nudez. A nave, muito nobre, flanqueada pe­las suas duas filas de colunas nuas e brancas; tudo isto um pouco severo e robusto. Lá ao fundo, um retábulo deplorável, com uma grande bola azul estrelada e da qual irradiam raios dourados. As naves laterais semelham desfiladeiros. E encontrava-me só, e rodeado de majestade, como sob o manto da Historia. Vagueando, fui dar a sala dos reis. Os de Portugal figuram em estatuas, ao longo das paredes. No centro, um papa e um bispo coroam D. Afonso Henriques, o fundador da Monarquia, ajoelhado entre os dois. Há na sala um grande caldeirão, que o inevitável guarda-cicerone, que acudiu ao ouvir ressoar os meus passos na solidão, me disse ter sido tomado aos castelhanos na batalha de Aljubarrota. Debrucei-me sobre a sua borda; estava vazio.
Desta sala passei ao claustro de D. Dinis, hoje a restaurar. Formoso recinto, nobilíssimo e melancólico. A agua da fonte canta a solidão da Historia entre as pedras mudas de recordações, e um pássaro atravessa o pedago de céu límpido, de cair do Outono, a cantar quem sabe o quê. As pedras olham-se na triste verdura do recinto.
E depois passei para ver o outro claustro, mais vivo, mais íntimo, o chamado do Cardeal, onde hoje ha um quartel de artilharia. Todo o antigo convento de monges bernardos mostrou-mo um simples camponês fardado de soldado de artilharia. O pobre jovem somente via ali o quartel, sem saber nada de monges. «Aqui fazemos os exercícios, aqui é o picadeiro, aqui...», etc. Na porta do que foi antanho biblio­teca, dizia aquilo dos provérbios: viam sapientiae monstrabo; «mostrar-te-ei o cami­nho da sabedoria». E mostrou-ma um recruta português, mas estava vazia, e não era um caminho, mas uma sala. Queria mostrar-me, é claro!, as pecas, os canhões. (1)

Voltei a igreja, agora com o guarda. Mostrou-me o altar em que se representa a morte de S. Bernardo, uma cena um pouco teatral, que parece de um grande presépio de cartão, desses de Natal, mas não será o seu efeito. Um frade de pedra chora eternamente, levando o branco manto aos olhos, não sei se a morte do seu santo pai S. Bernardo ou a trágica historia de Inês de Castro. Porque defronte deste altar uma pobríssima grade de madeira fecha a capela onde descansam! por fim os restos da infortunada amante de D. Pedro I.
O guarda levou-me até aos túmulos de D. Pedro, de D. Inês e de seus filhos, e pedi-lhe que saísse, deixando-me só. Nunca na minha vida esquecerei esta visita. Naquela severíssima sala, entre a grave nobreza da branca pedra nua, a luz apagada e difusa de uma manhã de Outono, as brumas da lenda embuçaram o meu coração. Uma paz cheia de solidões parece deitar-se naquele eterno descansadeiro. Ali repousam para sempre os dois amantes, joguetes que foram do trágico fado. Como aves agoureiras, vinham-me a memoria os alados versos de Camões ao contemplar o túmulo da
«mísera e mesquinha Que, depois de ser morta, foi rainha.»
É porque o puro amor
«que os corações humanos tanto obriga»
quer, áspero e tirano, banhar as suas aras em sangue humano.
Descansam em dois túmulos de pedra Pedro, o duro, o cruel, o justiceiro, o louco talvez, e a linda Inês, e descansara de tal modo que, se se levantassem, ficariam face a face e poderiam outra vez beber o amor nos olhos um do outro.
Seis alados anjinhos guardam e sustém a estatua jacente de Inês, e outros seis a de D. Pedro; aos pés dela dorme um dos três cãezinhos que ali houve outrora, e aos pés dele um grande lebreiro, símbolo da fidelidade. O túmulo dele é sustido por leões; o dela, leões também, mas com cabeças de monges. Na pedra do sepulcro de Inês, a flor da paixão, a escrava do amor, cenas da Paixão de Cristo, do que perdoava a que muito pecou por ter amado muito; no lado da cabeça, a Crucificação, e no lado dos pés o Juízo Final, em cujo céu ha uma mulher. O sepulcro de D. Pedro mostra-nos o martírio de São Bartolomeu. Ele, D. Pedro, com uma cara plácida, com cabelos e barbas a moda assíria, sustém a sua dura espada sobre o peito.
E pesa ali um ar de tragédia.
Ali está o que resta daquele rei D. Pedro I de Portugal, um louco com interva­los lúcidos de justiça e economia, como dele disse Herculano; aquele homem para quem foi uma mania apaixonada a justiça e que era carrasco por suas próprias mãos. Ele, o adúltero, odiava com um ódio raro os adúlteros: seria o remorso? Ali descansa de suas justiças, das suas nemródicas caçadas ; ali descansa, sobretudo, dos seus amores. Ali descansa o tirano plebeu, a quem seu povo adorou.

«Quando voltava em batéis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a recebê-lo com danças e trebelhos. Desembarcava e ia á frente da turba, dançando ao som das longas (trombetas) como um rei David. Estas folias apaixonavam-no quase tanto como o seu cargo de juiz. Por elas chegava a fazer loucuras. Certas noites, no paço, a insónia perseguia-o: levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava acender tochas; e ei-lo pelas ruas, dançando e atroando tudo com os berros das longas. As gentes que dormiam, saíam com espanto as janelas, a ver o que era. Era o rei. Ainda bem! Ainda bem! Que prazer vê-lo assim tão ledo!» (Oliveira Martins, Historia de Portu­gal, Livro II, capítulo III.)

Não recordais a historia trágica de seus amores com Inês, que Camões, mais que qualquer outro poeta, eternizou? Ai por volta de 1340, foi a linda Inês de Cas­tro, galega, para Portugal, como dama da infanta Constança, a mulher de Pedro, o filho de Afonso IV. E foi a mulher fatal, como diria Camilo. O fado trágico fez com que se enamorassem; aquele amor ch'a null'amato amar perdona, como disse o poeta da Divina Comedia. Tiveram frutos dos trágicos amores; intrigas da corte e da plebe fizeram que o rei Afonso mandasse matar a nora, pois, viúvo de Constança, Pedro casou logo em segredo com Inés, que foi apunhalada em Coimbra:
«As filhas do Mondego a morte escura longo tempo chorando memoraram; e, por memoria eterna, em fonte pura as lágrimas choradas transformaram!; o nome Ihe puseram, que inda dura, dos amores de Inés, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, que lágrimas sao a agua e o nome amores.»
E quando mais tarde D. Pedro subiu ao trono, conta a lenda que mandou desen­terrar Inês e coroá-la rainha, e, tendo-se apoderado de seus matadores, torturou-os barbaramente, vendo do seu palácio, enquanto comia, em Santarém, como os queimavam. E isto podeis lê-lo no velho e encantador cronista Fernão Lopes, que no-lo conta tudo homéricamente, com uma simplicidade tão animada que é um encanto.
Ele conta-nos tudo menos a exumação e a coroação, que parece ser uma lenda tardia, mas muito bela. E no fundo, de uma altíssima verdade transcendente.
Essa pobre Inês, que reinou depois de morrer... E de morrer por ter amado com amor de fruto, com amor de vida! Que reino e que rainha!... Rainha, sim, rainha no mundo das trágicas lendas, consola da tragédia da vida; rainha com Isolda, a de Tristão; rainha com Francesca, a de Paolo; rainha com Isabel, a de Diego.
Naqueles mesmos dias em que visitei em Alcobaça o túmulo de Inês lia A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco; de Camilo, o que nos deu nos seus romances toda a alma trágica, fatídica, patética, de Portugal. «Acuso-me — diz Camilo nesse livro -de ter feito chorar com a minha fantasia muitas pessoas incapazes de verter uma lágrima balsâmica sobre uma chaga de miséria verdadeira.»

Sim, Camilo faz chorar: os seus livros parecem escritos com lágrimas de fogo, que escaldara. E toda a Historia de Portugal, não faz porventura chorar? Não é chorosa?
Num canto da capela de Inês e Pedro descansara os restos dos três filhos do trágico amor fatal, e os seus três sarcófagos de pedra, simples, toscos, são relicários plenos de recordações. Pobres jovens! Na mesma capela dorme o seu eterno sono D. Beatriz, a mulher de Afonso III, e D. Urraca, a de Afonso II. A que não está ali é Constança, a pobre Constança, a infeliz esposa de D. Pedro, a quem D. Inês serviu e a quem arrebatou o coração do seu Pedro. Ela, Inês? Não, que foi o Fado. Oiçamos o velho cronista Rui de Pina, que na sua crónica do rei D. Afonso IV nos diz com a sua homérica simplicidade que «o Infante D. Pedro filho primogénito herdeiro de El-Rei D. Afonso de Portugal foi casado com a Infanta D. Constança Manuel, como atrás hei declarado, e dela em vida de El-Rei D. Afonso seu pai houve dois filhos e uma filha, o Infante D. Luís, que foi o primeiro, e este em moço faleceu, ao baptismo, do qual D. Inês Pires de Castro foi comadre de El-Rei D. Pedro sendo Infante e da Infanta D. Constança, e isto se fez porquanto D. Inês andava em casa da dita Infanta por sua donzela, e parente, e sentia-se já que o Infante D. Pedro Ihe queria bem, e por se evitar entre eles outra afeição.»
Não adivinhais já tudo? Fizeram Inês madrinha do filho de Pedro, seu amante, e de Constança, sua amiga, para criar pela religião um incesto entre eles. Desta cir­cunstancia tirou formosíssimo partido Eugénio de Castro no seu belíssimo poema Constanza. E na Monarquía Lusitana (VII Parte, Livro X, Capítulo VI) diz-se que se fortaleceu a confiança dos amantes ao ver que as forçosas consequências do parto faziam que D. Constança estivesse presa na cama.
Desgraçada Constança, mas muito mais desgraçada Inês! Afinal, aquela reinou de certo modo no mundo e na vida; Inês, a do amor fatídico, não pode reinar senão depois de morta, e morta por mãos violentas. Aqui poderiam dizer-se as palavras com que termina o Freí Luís de Sousa, a clássica tragédia Portuguesa: «Deus aflige neste mundo aqueles que ama. A coroa de gloria não se da senão no céu.»
Com pesar despedi-me do pétreo caixão que encerra os despojos do que foi a beleza de Inês de Castro, a de trágica memoria. E ali, fica, entre as brancas pedras cistercienses do mosteiro levantado para comemorar a independência de Portugal. Contudo, o severo monumento, nu, solitário, silencioso, lembra, mais que a independência da pátria, a independência do amor. Portugal, que, como Inês, amou muito e amou tragicamente sob o jugo do Destino —, não reinará também depois de morrer? A desgraçada amante não é um símbolo prefigurativo, um augúrio, dessa terra linda, linda como Inês, vítima também de fatídicas paixões?
Com pena, com pena de solidão, deixei aquela capela de amor fatídico, e, atravessando o templo voltei a ver a luz do céu. Sorriam com um sorriso outonal as coli­nas, sorria Alcobaça, uma vila branca de casario, verde de campo, risonha, florida, aberta, campesina e nobre, industrial e histórica. O seu rio é um rio de fábricas, ladeado de muros e rumoroso, desses que movem máquinas.

Voltei ao hotel — o Hotel Alcobacense — a pensar em Inês. Sobre uma pequena mesa, na sala de jantar, encontrei a London Opinión e a Revue des Voyages... Para que conste...
Percorri, agora de dia e numa carruagem colectiva, o caminho que na noite ante­rior percorri as escuras numa carruagem pequena e desconjuntada. Um caminho deli­cioso de campo, mais aberto que os do Minho e mais viçoso.
E outra vez no comboio, nesse odioso comboio, num desses insuportáveis vagões de caminho-de-ferro. Para me recompor ia a pensar no que seriam as viagens por essa encantadora terra portuguesa, toda carinho, naquelas diligencias de campainhas sempre a retinir de que nos fala António Nobre numa das suas mais íntimas poesias: «E, dia e noite, aurora a aurora, / Por essa doida terra fora, / Cheia de Cor, de Luz, de Som». E passavam moinhos de vento, eiras, solares, antepassados, rios, luar, paisagem etérea e doce, ao qual Nobre confessava dever u:-i» o que era, depois do ventre que o trouxe.
«E enquanto a velha mala-posta, / A custo vai subindo a encosta / Em mira ao lar dos meus Avós, / Os aldeões, de longe, alerta, / Olham pasmados, boca aberta... / A gente segue e deixa-os sós. // Que pena ver os que ficam! / Pobres, humildes, não implicam, / Tirara com respeito o chapéu: / Outros passando a nosso lado / Diziam: 'Deus seja louvado!' / 'Louvado seja! dizia eu. // E, meiga tombava a tardinha...» Uma paragem súbita, o grito de um rapaz a anunciar uma estação cortavam--me o sonho em que António Nobre me levava. E o comboio voltava a partir e eu voltava a sonhar.
A subida de Novelas, o gordo e rubro Cábemelas, o repouso na estalagem de toalhas brancas, marmeladas, o cuco da sala a dar as horas. E depois «Caía a noite. Eu ia fora, / Vendo uma estrela que lá mora, No firmamento português: / E ela traga-me o meu fado/ 'Serás Poeta e desbragado!' / Assim se disse, assim se fez.» E tudo o mais que Nobre nos conta até que chega a casa.
E em casa esperava-o a sua avó, que, abraçando-o, exclamava: «Qu'é dos teus olhos, dos teus braços, / Valha-me Deus! como ele vem!», e outras mil doçuras. Ele entrava no seu quarto, «Tudo tão bom, tudo tão farto! / Que leito aquele! e a agua, Jesus! E os lençóis! rico cheiro a linho! / — Vá, dorme, que vens cansadinho. / Não adormeças com a luz!» Mas ele deitava-se, mudo e triste; a avó acrescentava: «Reza também o Tergo, ouviste?», os versos a bailar dentro dele, e tirava as escondidas um livro que levava oculto no seio, e lia, lia Garrett... 4I
Também eu, ao chegar a Figueira da Foz, e ao cair sobre uma daquelas duras camas portuguesas, mas não na casa de meus avós, sim num hotel, me pus a ler, mas não Garret, sim Camilo. E assim como Nobre adormecia com a ideia daquela tia Doroteia de que fala Júlio Diniz, adormeci com a ideia daquele pobre Carlos Pereira, um dos pobres escravos do destino, de que nos fala Camilo. E com a lembrança da fatídica Inês de Castro, cujos despojos deixei a dormir em Alcobaça.
Salamanca, Dezembro de 1908.