quarta-feira, outubro 31, 2007

1 E 2 DE NOVEMBRO

Desde os alvores da humanidade, o ser humano construiu à volta do fenómeno da morte, uma enorme trama de suposições que a converteram em tabu. É a partir delas que o seu poder se revela e nenhum é tão avassalador e omnipresente como o da morte. Esta consciência está em nós, vive à nossa volta Todos temos presente que tarde ou cedo, de uma forma ou de outra temos de morrer; as únicas questões são saber o dia e hora. Prisioneiros entre esta realidade e o desejo de obter a imortalidade encontramo-nos num terreno propício à angústia, ao desespero e à solidão e, ao mesmo tempo, num espaço privilegiado onde as raízes das religiões, crenças e superstições se formam e alimentam para explicar tudo. No entanto a morte nunca deixou de ser um fenómeno biológico, como o nascimento, a puberdade ou o envelhecimento. Mesmo assim, criaram-se vários modos de considerá-la e lidar com ela, revelando-nos que os nossos arreigados costumes não nos vêm dados pela natureza e que podíamos mudá-los se quiséssemos.

A morte proporcionou a criação de linguagens próprias, gerando cada uma delas valores e comportamentos que estruturam muitas das nossas representações mas sobretudo na forma como vemos a vida. Se a secularização da sociedade relegou a morte para um plano secundário, a estetização do mundo contemporâneo, ligado à expansão das indústrias dos audiovisuais, mediáticas e à iconização exaustiva do mundo, fizeram dela um espectáculo constante onde é apresentada em todas as variantes, individuais, colectivas e violentas. Nela a guerra, a saúde, a ética continuam a ser marcantes tal como no passado. Reflectir sobre a morte continua, na sociedade actual, a ser um rico filão em termos de significados, e em temos estéticos. Porque ao contrário dos animais para quem a morte é uma circunstância natural e cujo cadáver se transforma em coisa, para o ser humano a morte é um problema, um drama estranho e difícil: o seu corpo deixa de ser algo vivo mas não se transforma em coisa. Ainda por cima e até hoje, nenhuma filosofia conseguiu libertar a humanidade dos temores da morte. Nem a crença no Além, nem a recompensa da fama, nem a prolongamento do falecido nos seus filhos são ou foram um consolo suficiente para o momento final.

Considerada como a nossa primeira experiência metafísica, a morte foi ao mesmo tempo estética e religiosa pelo enigma que terá representado aos olhos dos nossos primeiros antepassados, o “espectáculo” da transformação de um ser em “gelatina anónima”. O surgimento da arte ou da imagem está associada à morte. E nas sepulturas serviu como meio tranquilizador para enfrentar o medo ao vazio e ao estado de impessoalidade ou de nada em que se transforma o ser com a morte. Servindo ainda como meio de representação e de comunicação entre o visível e o invisível, entre o temido e o tranquilizador. Cumprindo uma função mediadora e de contacto entre duas realidades opostas: unir presentes ao ausente.

A sociedade tecnológica em que vivemos não sabe que fazer com os mortos; enquanto nas aldeias ainda existe alguma convivência com eles; nas cidades o morto evita-se e a morte burocratizou-se. Ela é espelho da vivência urbana. Numa sociedade que se move à volta de uma organização socioeconómica, onde os únicos valores são o êxito, a produção e o lucro, o culto da morte não tem razão de existir. Mesmo assim um enorme “complot” foi estruturado para a sobrevivência do tabu onde até a Igreja entra nesta macabra cadência, ao substituir o nome de Extrema Unção pelo de Santa Unção como em tempos não muito pretéritos. Da boa morte passou-se à morte bela, e da secularização aos secularismos invasores; é o desafecto total à religião. O Além vai perdendo espaço em favor do Aquém mas paradoxalmente em cada 1 de Novembro os cemitérios enchem-se de flores como símbolo deste culto.
António Delgado In Jornal de Leiria. Edição de 1 de Novembro de 2007 e ver António Delgado in " Estetica de la muerte en Portugal"

PS. Aconselho uma excelente postagem do Jorge Casal , cujo tema é associada ao dia de Todos os Santos.