terça-feira, setembro 28, 2010

1873: Alcobaça e Alcobacenses vistos por um autóctone

Foto de Francisco Zagalo



O texto que abaixo publico é um extracto de um livro singular, que considero dos mais interessantes que se escreveram sobre Alcobaça após a saída dos monges, e que é pouco conhecido pela maioria das pessoas da terra.
Na sequência dos Olhares de Estrangeiros em tempos idos sobre Alcobaça, que venho publicando conforme a minha disponibilidade, decidi incluir a visão de um nosso conterrâneo, por ser actual em alguns aspectos e demonstrar como Alcobaça se mantém parada no tempo. É um olhar cirúrgico que deveria fazer reflectir.
O conterrâneo em causa é Bernardino Lopes de Oliveira. Um nome conhecido, mas que poucos saberão quem foi ou o que fez.
Antes de prosseguir esta introdução do meu comentário, devo dizer que o extracto é retirado do livro a “ História da Misericórdia de Alcobaça”, publicado em Alcobaça em 1918, oito anos após a morte do autor, Francisco Zagalo. Um destacado médico proeminente da vida social e cultural de Alcobaça no virar do S. XIX para o S. XX, cuja memória foi perpetuada na toponímia da povoação. Precisamente numa artéria que nunca mais tem os melhoramentos anunciados vezes sem fim pelo elenco camarário, como remate que falta na configuração do terreiro que foi feito em frente ao mosteiro.
Bernardino Lopes de Oliveira tem também o seu nome na toponímia de Alcobaça, e como outros alcobacenses abastados do século XIX, deixou-nos uma enorme casa, que é em termos arquitectónicos uma das mais significativas da povoação no panorama da arquitectura da terra. De linhas sóbrias e estilo neoclássico tardio, está longe do género abrasileirado e neocolonialista, tão típico e adoptado por alguns novos-ricos de então, como se podem ver exemplos na povoação. Bernardino Lopes, não optou pela ostentação, apesar de ter sido emigrante de sucesso no Brasil, onde amealhou uma fortuna considerável.
Pela sua experiência vivida no estrangeiro e por um cosmopolitismo que demonstrou em atitudes políticas posteriores, quis dotar Alcobaça de um ar moderno, longe daquele que o chocara numa viagem para matar saudades da terra e que era do mais atrasado. Custou-lhe ver o aspecto das pessoas e das casas da povoação, que eram da “mais repugnante decadência” e o “estado intelectual e moral dos moradores (…) em geral ignorantes e grosseiros”. Mais tarde, quando decidiu voltar para Alcobaça, insere-se na vida social, cultural e política da terra, promovendo actos e associações, onde se destacam a antiga “Associação Recreativa Clube Alcobacense” e o “Clube de leitura” anexo a ela. Promoveu o teatro, foi provedor da Misericórdia, vereador da Câmara e seu presidente em 1873. A ele se deve, enquanto provedor da Misericórdia, a iniciativa da construção do Hospital que tem o seu nome. Esta é uma das maiores infra-estruturas sociais de que alguma vez se dotou a terra após a saída dos monges.
Na vida política cedo se empenhou em resolver os problemas que impediam a povoação ter uma imagem condigna com os seus pergaminhos. Entre esses problemas, ele considerava ser a pouca urbanidade dos seus habitantes, a sujidade que se via a cada passo pelas ruas, a maledicência, os vícios da influência na politica, o interesse mesquinho e o amiguismo, que deturpavam a coisa pública, já que uns quantos beneficiavam do município em detrimento dos demais.
Apesar dos anos decorridos, esta última realidade ainda não foi banida da terra, e o aspecto de povoação abandonada e decadente continua. São bem visíveis por todo o lado, nos imóveis e lojas, tabuletas e cartazes a anunciar “trespassa-se”, “vende-se” ou “aluga-se”, como se não se quisesse viver por aqui ou quisessem abandonar o lugar. As tabuletas que adornam janelas, portas, varandas , montras… dão um ar pitoresco à terra e os mesmos dizeres quando são pintados directamente nas paredes dos próprios edifícios, à mão livre, tornam-se mesmo patuscos. Suponho até que a Câmara irá brevemente promover um concurso sobre “ o slogan mais bem pintado” ou “ o lugar mais imaginoso para se expor uma tabuleta". Tudo com direito a um subsídio e um júri composto pelo PS e a CDU, as associações de defesa do património e os “defensores do mantenham isto assim”. A esta imagem da vitalidade local, juntam-se ainda as muitas casas e paredes em ruínas e leprosas, escaqueiradas, que se vêem a cada passo na povoação e que servem, nalguns casos, de mictórios e outros propósitos afins, e onde abundam dejectos, lixo, maus cheiros, ratazanas e bicharada rastejante que promovem uma vida salubre e atraente para quem vive nas imediações ou passa por lá, especialmente crianças e idosos.






Mas como no presente, a vida política em Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira, não seria o melhor meio para alguém de bem ajudar uma terra a prosperar e a elevar o sentido crítico dos seus conterrâneos. Bernardino Lopes de Oliveira, além de dotar o governo da edilidade de um pragmatismo, até então inexistente, e que muniu as contas públicas de racionalidade, como atestam as actas da câmara no período em que a presidiu, tomou ainda decisões importantes, mas não corrigiu os vícios existentes numa cultura politica , que por simpatia não é muito semelhante à de hoje.
Por isso, apesar do enorme prestígio que desfrutou na condução da coisa pública, não foi o suficiente para ser eleito num segundo mandato, ficando impossibilitado de continuar projectos já delineados que dotariam Alcobaça de outro Glamour que continua a não possuir.
Quem sucedeu a Bernardino Lopes de Oliveira, fez precisamente o contrário, como é costume à boa maneira das oposições TUGAS, paralisou projectos e montaram-se clientelas “ com favores concedidos à custa do cofre municipal”, como chegou a afirmar.
Alcobaça parece dar-se mal com gente séria, altruísta e de visão, onde se favorece politicamente, a manha e o interesse opaco.
Quanto à falta da crítica avisada, a tanto almejava Bernardino Lopes, ela continua a não existir, senão não teríamos ouvido quase 150 anos depois, Augusto Mateus afirmar: “Alcobaça não tem massa crítica necessária” (in RC 27/9/2007).


1873: Alcobaça e alcobacenses vistos por um autóctone





Rossio de Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira
Igreja Nova ao fundo, desmantelada em 1915
No seu lugar existem os actuais CTT.

"De há muito que se vinha reconhecendo a insuficiente capacidade do hospital, e nos últimos anos os progressos nosocomiais o haviam condenado sob o ponto de vista higiénico.
Foi o que determinou a comissão administrativa da Misericórdia em 6 de Janeiro de 1875 a deliberar pedir ao Governo a concessão da parte norte-nascente do Mosteiro junto da livraria, para ai se instalar o hospital, e no dia 1 de Fevereiro do mesmo ano pedir antes para o mesmo fim a livraria e suas dependências.
Foi pelo mesmo motivo que a comissão administrativa da Misericórdia em 23 de Novembro de 1883 deliberou mandar proceder a estudos para se fazer mais urna enfermaria no celeiro.
Nem a livraria foi concedida, nem a enfermaria foi feita.
Em 1884 foi criado e colocado em Alcobaça o regimento de cavalaria nº. 9 e isso determina uma tal afluência de doentes que, apesar dos doentes civis não serem recolhidos no hos­pital e serem tratados no domicilio, estava o hospital sempre pejado e por vezes tão acumulado com adicionamento de leitos suplementares nas enfermarias e ocupados todos os seus compartimentos, inclusive a capela, que foi profanada, que as suas condições higiénicas se tornaram péssimas e ameaçavam determinar dum momento para o outro alguma catástrofe pa­vorosa.
Ponderado isto pelos médicos e reconhecido pelos irmãos de cápela no seu exercício de enfermeiros-móres, a comissão administrativa, não podendo aproveitar o antigo celeiro, já transformado cm habitação dos enfermeiros, resolve na sua sessão de 2 de Janeiro de 1886 adquirir os materiais necessários para a construção duma enfermaria no quintal do hospi­tal e proceder a essa construção por administração.
No sessão extraordinária de 18 do mesmo mez e ano os facultativos do hospital, consultados pela comissão, foram de opinião que a enfermaria projectada ia agravar as más condições higiénicas do hospital e com ela se ia desperdiçar urna quantia que faria falta ao construir-se um hospital novo, sem em nada valorizar o edifício hospitalar quando vendido a um particular, sendo este o destino que se Ihe devia dar, quando fosse possível, pois que, sendo urna boa casa de habitação para uma família, era péssima para hospital. A mesa deliberou, pois, sobreestar na construção da enfermaria projectada e incumbiu os facultativos de Ihe indicarem os requisitos a que devia satisfazer o hospital a construir.
Era o ponto em que estava tão momentoso assunto quando entrou em exercício em 19 de Julho de 1886 a comissão admi­nistrativa que Bernardino Lopes de Oliveira começou a pre­sidir em 3o de Agosto.
Esse assunto havia saído da área restrita da mesa administrativa da Misericórdia para o largo âmbito do publico, que conseguiu interessar, pelo que ele importava á sorte dos des­validos que a todos condoía.
Todos lamentavam que os desventurados torturados pela miséria e pela doença se vissem privados, pela pouca capacidade do hospital, de aproveitar o seu conforto e a metódica e solicita aplicação dos medicamentos e da dieta ai feita para mais facilmente recobrarem a saúde e tornarem-se cidadãos validos, amparo de sua família indigente, e que, quando lá internados, Ihes proporcionasse condições desfavoráveis á rá­pida restauraçáo da vida e da saúde. Anteviam, pois, a necessidade impreterível de se proceder imediatamente á construção dum hospital que, pelo local onde fosse situado, pela sua ampla capacidade, grande cubagem e franca ventilação, podésse comportar todos os doentes que necessitassem internar-se nele e lhes facultasse a higiene promotora do seu rápi­do restabelecimento.
Mas a modéstia dos recursos da Misericórdia que Ihe permitia, quando muito, custear o tratamento e curativo dos doentes, fazia arredar a ideia de o construir á custa do seu fun­do permanente que, por esse modo desfalcado, não daria posteriormente rendimento suficiente a custear o tratamento dos doentes. E não devia pelo presente sacrificar-se o futuro, ori­ginando embaraços permanentes e irremediáveis. Devia, pois, proceder-se á construção com receita estranha ao fundo per­manente da Misericórdia: com subsídios do Estado e com do­nativos particulares. Subsidio do Estado em madeiras do pinhal nacional antevia-se a possibilidade de o alcançar suficien­te, mas alcancar da subscrição particular a quantia de réis 6.ooo $ooo, em que a modesta aspiração dos que mais desejavam a pronta realização de tão momentoso e urgente melhoramento cifrava indispensável para o efectivar com as madei­ras, concedidas pelo Estado, é que se julgava ser quantia muito superior á que era de esperar produzisse a subscrição em terra tão pequena como Alcobaça. Demais afigurava-se que esta seria muito modesta, apesar dos mais acendrados sentimentos de altruísmo que animavam os moradores de Alcobaça e da sua relativa opulência, por a orientado até ai dada á administração da Misericórdia, tornada um joguete das facções políticas, suscitar nos alcobacenses sobressaltada desconfiança.
Assim os mais devotados propugnadores da breve realização desse melhoramento viam-se enleados na mais invencível impotência e limitavam-se a aguardar numa anciosa espectativa por que se clareasse o horisonte muito obscurecido por nuvens caliginosas, sem anteverem algum vento impetuoso e benéfico que as dissipasse.
A entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia fez entrever um clarão de esperança que alentou as almas bem formadas e as aprestou a entrarem em campanha, na mais gloriosa e benéfica das campanhas, quando se ensejasse ocasião oportuna.
Necessitamos tracejar em rápido escorço a biografia de Bernardino Lopes de Oliveira para compreenderem, os que o não conheceram, a razão por que a sua aparição na administração da Misericórdia suscitava tão lisonjeiras esperanças.
Bernardino Lopes de Oliveira, nascido em 4 de Novembro de 1832 de pais sem fortuna, que proviam as necessidades da família numerosa com o mais áspero e duro mourejar, foi de Alcobaça, sua terra natal, para o Brazil em Agosto ou Setembro de 1847, em idade de 14 anos. Mal sabia ler e escrever e ainda não havia recebido sequer as primeiras noções duma profissão que o habilitassem a grangear a própria subsistência. Levava consigo um dote precioso que foi sempre o traço sa­liente e predominante do seu carácter. Lograva urna energia inquebrantável, uma vontade de ferro, que o empenhava sem uma vacilação, sem a sombra sequer duma hesitação, na realisação dum propósito que tinha em mira, prosseguido sempre tenazmente, aproveitando as circunstancias favoráveis e não desalentando com as adversas, até á sua consecução final. Parecia convicto e demonstrou cabalmente que querer é poder.
Foi, pois, para o Brazil, para o Recife, com o proposito de conseguir uma fortuna que Ihe permitisse viver desafogadamente e proporcionar igual desafogo aos seus, que estremecia, e cujo penoso viver o angustiava.
Desprovido de habilitações e sem protecção que o recomendasse, considerou-se feliz em ser admitido como marçano em um estabelecimento comercial. A sua submissão paciente aos mais duros encargos, a morigeração do seu proceder austero e impecável, e a Ihaneza e afabilidade prodigalizada aos fregueses em breve Ihe captaram a simpatia dos caixeiros e do patrão. Assim foi ascendendo com relativa rapidez a caixeiro e a sócio, e de sócio a comerciante independente.
Com as suas eminentes qualidades pessoais e com os su­bidos créditos que ele lograva na praça e que Ihe atraíam nu­merosa e valiosa freguezia do sertão, em poucos anos conseguiu ver realizado o seu almejado sonho. Aos trinta anos possuía já fortuna avultada.

Vem então, em 1862, pela primeira vez a Portugal, a Alcobaça, a matar saudades que o pungiam acerbamente, mas que ele havia comprimido emquanto não viu próximo da com­pleta realização o seu ideal.
Aquí, comparando as impressões indeléveis que a sua infância Ihe havia vincado na fantasia poetisadas pelos tons ró­seos da saudade, com a realidade, sofre uma cruel decepção. A vila de Alcobaça, outrora desdenhada pelos frades que só se preocupavam com a sua vivenda colossal e principesca, e pouco melhorada pelos que se Ihes seguiram no domínio e que só procuravam disfrutar o rendimento das esplendidas propriedades que os frades haviam fertilisado com o seu suor em outros tempos e ultimamente com a mais avançada cultura, estava um verdadeiro chavasca! Os prédios de arquitectura mesquinhamente tacanha, descurados, mal caiados, ofereciam o espectáculo da mais repugnante decadência, e as ruas da terra mal nivelada ou mal calcadas e o seu grande largo situado ao cen­tro, sem calcetamento, com o solo desigual cortado de bastantes gibas entremeadas de covas que, durante o tempo invernoso, se transformavam em verdadeiros atascadeiros, e atravessado por uma longa vala onde corriam a descoberto as enxurradas da chuva que felizmente vinham de vez cm quando fazer a limpeza de toda a espécie de imundicie que a cada passo e sem repressão alguma para ali era arrojada, davam uma triste ideia do estado de civilisação dos moradores. A divagação constante pelas ruas da povoação de todos os animais, e o mercado dos cevados no centro e o pejamento nos dias de mercado do local a ele destinado com os burros em que se transportavam os moradores das povoações rurais numa mescla pitoresca com os bipedes, mescla perigosa pela liberdade que disfrutavam os quadrupedes e com as manhas algo agressivas que alguns haviam adquirido, completavam os característicos duma povoação sertaneja, absolutamente alheia ao progresso e á civilisacáo. E este aspecto deploravel da vila era completado com o do seu Mosteiro. Completamente abando­nado após a supressáo e evasão dos frades, a povoação caiu sobre ele como um bando de famintos e, arrebatando-lhe tudo o que precisavam ou erri que supunham algum valor ou que Ihc despertava a curiosidade. Tiraram, onde Ihe aprouve, portas e janelas e cantarias, e, emquanto os livros não foram removidos para Lisboa, também eles foram alvo das suas depredações, e com tal inconsciência, que não subtraíam livros que os ilustrassem ou tivessem alta valia literaria, levavam o que infantilmente os recreava pelas gravuras ou pelas iluminuras que os ilustravam, e tão estupidamente, que truncavam obras, levando um ou dois volumes, e deixavam ficar os outros. Patenteava-se, pois, o Mosteiro em ruínas, mas não eram as ruínas vetustas determinadas pelo decorrer dos seculos que Ihes imprime uma feição pitorescamente poética, e sim as ocasionadas pela atabalhoada e selvática acção demolidora, que Ihes da um aspecto repelente. O estado intelectual e moral dos moradores condizia com o da povoação, sua fiel imagem. Em geral eram ignorantes, de trato grosseiro, e muitos suspiravam ainda com infinda sau­dade pela época fradesca, em que por módico preço obtinham a farta pitança das rações que, pela abundância, os abarrotavam, e, por vezes, os deliciavam com as delicadas iguarias com que os brindavam pelas festas conventuais. A convivência, pelo menos a convivência estabelecida para a troca recíproca de ideias e impressões, era nula, a não ser no sexo feminino das famílias abastadas, que na singeleza mais simpática dedicavam as tardes, passadas ora na casa du­ma ora na casa doutra, á palestra amena e afectuosa, que não as distraía dos lavores domésticos de costura a que se entregavam. Os homens, constantemente entregues á sua faina, reuniam-se algumas vezes, quasi sempre raro á noite, nas boticas ou em alguma mercearia mais em voga, para se entregarem á caustica mordacidade da má língua, conspurcando e esfacelando as vidas alheias. Isto com relação ás classes mais ele­vadas pela sua hierarquia social ou pela sua abastança de meios de fortuna. Das outras classes, os homcns dedicavam o tempo que Ibes sobrava do exercício da sua profissão artística ou agrícola á palestra nas tabernas, aquecida com o largo con­sumo de vinho, e as mulheres o que sobrava dos cuidados do­mésticos em que sempre foram exemplares, ao cavaco do soalheiro implacavelmente dilacerante para os ausentes. A educação, que se ministrava, presume-se pelos hábitos dos edu­cadores, cuja manutenção consideravam o supremo ideal a atingir.
Foi profundamente amargo o desconforto que produziu em Bernardino Lopes de Oliveira o reconhecimento do estado material e moral da sua terra natal, e essa profunda impressão determinou-lhe, após alguns dias de meditação, uma das suas resoluções inabaláveis e de que coisa alguma o fazia de­sistir.
Resolveu regressar ao Brazil para liquidar em curto prazo os seus haveres ou orientar a administração da sua importante casa comercial de fazendas sem a sua assistência, e voltar pa­ra Alcobaça, estabelecendo aqui a sua residência, e empenhar a sua energia e a sua fortuna no levantamento do seu nível material, intelectual, social e moral.
Resolveu e fê-lo.
De regresso definitivo do Brazil em 1864 estabeleceu a sua residência nesta vila e imediatamente poz por obra o seu propósito.
Havia um teatro mal instalado no refeitorio do Mosteiro. Promoveu que ele fosse reformado tal como agora se acha, que fosse dotado de pano de boca e de scenario, e que os amadores dramáticos, alguns bem distintos, que aqui havia, e que davam raras representares, se organisassem, recrutando mais pessoal, de modo a darem duas representações por mez. Promoveu a organisacão de bailes de mascaras animadissimos, brilhantes, e em que se mantinha todo o decoro com o mais meticuloso cuidado, como em um baile realisado em urna casa particular da mais severa honestidade. E para os facilitar e tornar mais atraentes mandou vir abundante e selecto guarda-roupa de Lisboa, que franqueava gratuitamente. Promoveu e foi um dos socios fundadores da associação recreativa Club Alcobacense, e do Gabinete de Leitura, dando muitos volumes emquanto a sua biblioteca esteve mal provida.
Em 1878 começou a fazer parte da Camara Municipal, de que era presidente, e que quasí sempre se conformou com a orientação que ele deu á administracáo municipal. Proveu mediatamente ao poiicíamento da vila e principalmente dos seus mercados. Fez remover o mercado do gado suino do cen­tro da vila para o seu extremo e já fóra dela, para a Roda. E determinou que não fosse consentido animal algum a diva­gar pela vila. E que nos seus mercados não fosse tolerado burro algum parado, sendo recolhido apenas a ele chegasse e o respectivo cavaleiro desmontasse ou a respectiva carga fosse arreada.
E não eram estas medidas de pequeno alcance e de fácil execução, como agora se nos afigura. A primeira foi recebida tão agressivamente que aliciou os principais partidarios da vereação que Ihe sucedeu com o carácter de completa reaccáo as suas medidas. O mercado de gado suino ainda voltou para o centro da vila, onde pouco se demorou, tão fortemente o bom senso impulsionou a opinião publica, reprovando essa reacção barbara. A ultima providencia concitou um temeroso tumulto, promovido pelos moradores das freguezias rurais, o qual se aplacou sem consequências de maior, graças á serenidade e intrepidez de Bernardino Lopes de Oliveira.
Estudando a administrado municipal de Alcobaça reconheceu que ela estava em um perfeito caos. Os melhoramentos custeados pelo cofre municipal eram efectuados não por serem os mais úteis e urgentes, mas por lograrem a recomendação dum valioso influente eleitoral, e por vezes eles eram mais em proveito dos influentes do que do municipio. Propoz e a Cámara sancionou com o seu voto que se investigasse quais os melhoramentos de que o municipio estava carecido, se mandasse proceder aos respectivos estudos e á elaboração das plantas e correlativos orçamentos. Que depois fossem classificados pelo seu grau de utilidade e de urgência, e que se fossem executando pela ordem dessa classificação e em conformidade com a verba disponível e não ao grado das influen­cias que os solicitassem. Fez uma administração impertubavelmente justa em que teve conscjencia de mclhorar consideravelmente o aspecto das povoações do concelho c as suas condicóes higiénicas. Não fez mais porque urna grande parte da receita disponível foi dispendida com os trabalhos preparato­rios para a execucáo dos melhoramentos, trabalhos de que os seus sucessores não fizeram caso, porque não lhes conveio adaptar o plano racional a que ele subordinava a sequencía da gerencia administrativa. E, terminado o trienio, não foi reeleito, apesar do grande prestigio que o seu proceder austero e sensato Ihe havia grangeado, porque os corrilhos políticos, saudosos das cadeiras senatoriais, onde com favores concedi­dos á custa do cofre municipal grangeavam muitos prosélitos, não consentiram que ele Ihes inutilisasse as artimanhas, se-guindo inquebrantavelmente o plano adoptado e que, se fosse proseguido, levaría com certeza Alcobafa e o seu concelho a estado de maior adiamamento do que está.
Com estes precedentes a entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia era de molde a esperar-se a sua reconstituição e o travamento da sua inegável e rápida decadencia. Receava-se sómente que o resto da comissão, constituindo uma grande maioria, e constituido por in­dividuos filiados na faccáo política dominante, não assentisse ao seu modo de ver e tolhesse o desenvolvimento da sua no­toria actividade e energia. Felizmente, assim não sucedeu. Ou porque se deixasse subjugar e arrastar pelo seu grande prestigio, ou porque antecipadamente houvesse sido pactuado tal proceder, como condição indispensavel para que Bernardi­no Lopes de Oliveira aceitasse o cargo para que foi nomeado, o facto é que a mesa trabalhou sempre de acordo e na melhor harmonia com o seu presidente, colaborando eficaz e dedicadamente na execução das propostas dele, por ela aprovadas.
Bernardino Lopes de Oliveira toma posse cm 3o de Agosto e imediatamente, de acordo com a mesa, convida os indivíduos mais em evidencia pela sua posição social e pela sua fortuna para se reunirem na casa do despacho da Misericórdia. Nessa magna reunião, onde se achavam indivíduos de to­das as parcialidades políticas, cxpoz Bernardino Lopes de Oliveira as más condicões de capacidade e de higiene do hos­pital, que, por isso, era forçoso proceder á construção de um novo, mas que a Misericórdia, pela modestia dos seus recur­sos, não podia levá-la a efeito. Que podia aplicar-lhe algumas sobras do seu rendimento e a receita proveniente do edifício que estava servindo de hospital, e talvez conseguisse do Esta­do algumas madeiras do pinhal nacional, mas que tudo isso era insuficiente para o levar a cabo. Tal empreendimento só­mente seria realisavel com a coadjuva^áo dos habitantes de Alcobaca expressa em largos donativos. Por esse motivo ha­via convidado os cavalheiros presentes para dizerem o que Ihes parecesse a tal respeito.
A assembleia unanimemente reconheceu a necessidade da construção do novo hospital e prontificou-se a contribuir com donativos para ela, dando um voto de plena confiança á mesa para tratar de tal assunto, procedendo á referida construção e solicitando os donativos quando Ihe parecessc oportuno.

Em 3o de Setembro, em sessão de mesa com assistência do administrador do concelho, previamente convidado, Bernardino Lopes de Oliveira propõe que se construa o hospital na Roda em local indicado pelos facultativos, pedindo-se á Camara a concessão do terreno, e que se elabore a respectiva planta, a qual o administrador do concelho se incumbiu de apresentar; que para a referida construção se destinasse o sal­do das gerências anteriores, a verba no orçamento destinada á construção da projectada enfermaria no quintal do hospital e 5oo$ooo réis do fundo permanente e o produto da renda do edifício onde estava o hospital, pedindo-se autorização para se efectuar essa venda, e que a mesa solicite donativos. Fui esta proposta aprovada por unanimidade.
Em 3 de Novembro o vice presidente participa que, havendo em nome do presidente solicitado da Câmara Municipal a concessão do terreno para edificação do hospital, ela o havia concedido por unanimidade na sua sessão de 10 de Outubro.
Em 16 de Fevereiro de 1887 foi presente á mesa a planta do hospital de Lamego, resolvendo a comissão que fossem consultados os facultativos acerca dela.
Em 7 de Março informa o presidente que os facultativos são de opiniáo que a planta do hospital de Lamego logra to­dos os requisitos exigidos pela sciencia, mas não se acha pela sua sumptuosidade e vastidão de harmonia com a capacidade que deve ter o hospital de Alcobaça, nem com os recursos de que a Misericórdia poderá dispôr, e eram de parecer que a referida planta fosse enviada a um arquitecto e juntamente a nota da capacidade necessária e dos recursos ao alcance da Misericórdia, para ele elaborar planta adequada. Por unani­midade deliberou a mesa que assim se fizesse.
Em 4 de Abril aprésenla Bernardino Lopes de Oliveirá um esboceto do futuro hospital da sua lavra, esboceto que alcançou a aprovação dos facultativos. A comissão delibera que seja esse esboceto enviado a um arquitecto para o transformar tecnicamente em planta definitiva.
Em 16 de Junho são presentes á comissão dois esboços de planta do hospital elaborados pelo arquitecto, sendo um com rez-do-cháo e primeiro andar, e outro em um só pavimento, tendo ao centro um andar superior para acomodações dos enfermeiros, optando os facultativos por este. A comissão deli­berou mandar organisar a planta em conformidade com este ultimo esboço." Francisco Zagalo op.cit. pp 239 a 247.