sexta-feira, agosto 20, 2010

FECHAR ESCOLAS E UM TEXTO DO EÇA DE QUEIRÓS SOBRE EDUCAÇÃO PÚBLICA



Escolas que fecham em Alcobaça:


Escola Básica Casal do Abegão, Évora de Alcobaça, Alcobaça; Escola Básica Mélvoa, Pataias, Alcobaça; Escola Básica Silval, Turquel, Alcobaça; Escola Básica de Frei Domingos, Benedita, Alcobaça; Escola Básica de Acipreste, Évora de Alcobaça, Alcobaça; Escola Básica do Carrascal, Aljubarrota (Prazeres), Alcobaça; Escola Básica da Junqueira, Cela, Alcobaça; Escola Básica de Castanheira, Coz, Alcobaça; Escola Básica de Valado de Santa Quitéria, Alfeizerão, Alcobaça; Escola Básica Gaio (EB1); Escola Básica da Pedreira de Moleanos, Évora de Alcobaça, Alcobaça; Escola Básica do Casal Velho, Alfeizerão, Alcobaça

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Nos últimos dias, os comentadores e as oposições têm-se mostrado indignados com o fecho oficial de centenas de escolas pelo país fora. Parece que “o assunto não irá ficar por aqui”, ameaçam alguns.

Desde os governos liberais, republicanos, Estado Novo até mais recentemente aos governos pós 25 de Abril, a educação nunca foi entre nós uma prioridade, salvo para fazer estatísticas de ocasião, que nada revelam senão o que se sabe. Um eterno problema adiado.

Em 1872, Eça criticava o estado da educação pública em Portugal, e a demissão dos sucessivos governos neste assunto, num artigo datado de 1872. Com relativa facilidade podem-se estabelecer paralelismos entre os problemas da actualidade e os que criticava no passado. O texto tem cerca de 120 anos, mas se fizermos um exercício de abstracção relativamente ao estilo linguístico da época e à ortografia, parece que nada mudou em mais de um século.

O crítica assertiva de Eça quanto à educação mantém-se.
Mesmo e depois de assistirmos sucessivamente às invenções do telefone, do cinema, do automóvel, do avião, do telemóvel e da internet com que muitos deliram, Portugal continua a não entender de Educação e deve ser o único país onde esta realidade se repete.

PS. O texto de Eça de Queirós está na escrita original.







TEXTO DE EÇA DE QUEIRÓZ, SOBRE A EDUCAÇÃO (1872)




Eis aqui, com algumas reflexões e algumas cifras, o estado da instrução publica em Portugal:


Em primeiro lugar a instrucção entre nos está toda a cargo do governo.
As camaras municipaes, que por urna velha tradiçáo nunca se occuparam das cousas da intelligencia — nao dão sequer esmola ao A B C. Uma Camara tem antes de tudo, como objecto, macadamizar commodamente as ruas ou as viellas de SS. SS.as os vereadores; depois tem de construir as estradas que levam as quintas, onde SS. SS.as os vereadores, de tamancos e collete aberto, suam sob a folhagem da faia — sub tegmine fagi; depois tem de empregar, subsidiar, e em geral manter, todos os afilhados de SS. SS.as os vereado­res. Quando chega a passar o A B C, SS. SS.as teem a inicia­tiva cançada e a bolsa esvaziada.

Por seu lado os particulares, com singularissimas e sympathicas excepções, nunca levaram a mão à algibeira, para dar um pataco a uma escola. (E como estranhar esta abstengo póde parecer urna originalidade phantasista, devemos lembrar que em Inglaterra, Franca, Allemanha, Dina­marca, Suecia, Italia, Russia, Hespanha, Estados-Unidos, os particulares sustentam com um hombro as paredes da escola que os municipios amparara com o outro.)
A leí de 20 de Setembro de 1844 concedeu as cámaras municipaes authorização para fundarem, com os seus rendimentos, escolas primarias. Quem atienta n'estes termos, suppõe muito racionalmente que as cámaras estavam ávidas de fundar escolas, e que o amor da instrucção tinha verda-deiramente tomado o freio nos dentes: suppóe ainda que leis anteriores teriam circunspectamente domado este impeto desabalado de educar: — e que a lei de 1844, alargando um pouco as redeas, permittiu as cámaras palpitantes o criarem as appetecidas escolas, nao n'uma carreira desordenada, mas n'um chouto modesto: e suppóe emfim que, feíta a concessão, as cámaras se atiraram aos pulos, aos corcovos, com a clina esguedelhada, a levantar os alicerces das escolas! Pois bem, sabem quantas escolas teem as cámaras fundado, inteiramente a expensas suas, desde 1844, ha quasi trinta annos ? Urna, em Setubal!
De resto, nao sejamos injustos. Algumas cámaras tendo, com o curso dos annos, chegado a comprehender que
soletrar nao é inteiramente táo criminoso como roubar, déram generosamente o auxilio dos seus cofres para a organizado do ensino—e as 300 cámaras do paiz, juntas as 4:000 parochias, teem concorrido, n'este espaco de 30 annos, com um subsidiozinho de tostóes para a fundação de 41 escolas!




Tal é o desvelo, a intelligencia, o patriotismo com que SS. SS.as, as espêssas cámaras municipaes, se occupam da instrucção.
É urna situação paralella á dos cafres — de nossos irmãos os cafres.

O Estado, portante, tem a instrucção inteiramente a seu cargo, e sob sua responsabilidade.
Ora, tendo um paiz a educar, eis o que o Estado tem feito:
Sabéis, amigos, quantas escolas ha, de Norte a Sul, n'este paiz onde floresce a vinha e Melicio pensa ?
2:300!
Existindo no paiz, segundo as ultimas estatisticas, 700:000 crianças, e nao sendo justo que se apertem na estreiteza abofada d'uma escola mais de 50 alumnos, (e ja é fazer transpirar de mais tenros cidadáos imberbes) segue-se que deveriamos ter 14:000 escolas...
Temos 2:300!
Devendo, pois, fundar urna escola para cada 50 crianzas, possuimos apenas urna escola para cada 300 crianzas! Ha urna escola para cada 2:600 habitantes!
Das 700:000 crianças que existem em Portugal o Estado, n'essas 2:300 escolas — ensina 97:000. Isto é, de 700:000 crianzas, estáo fóra da escola mais de 600:000!
D'estas 97:000 enancas que frequentam as escolas, sabéis, amigos, quantas se apuram promptas, por anno ? Segundo as ultimas inspecções — em cada 50 alumnos apura-se 1 alumno!


Portante Portugal, de 97:000 crianzas que traz nas suas escolas —tira por anno, sabendo os rudimentos, 1:940!
Mordei-vos de ciumes, oh cafres!
Para esta situação concorrem o alumno, o mestre, e a escola. E a culpa toda recabe no Estado. Porque o Estado impossibilita o alumno, inutiliza o mestre e abandona a escola. Vai, como o general Boum, por tres caminhos — contra o A. B. C.!
Nos campos a familia é hostil á escola, diz-se. Erro.
A familia nao nega o filho á escola, requer o filho para o trabalho. A criança ahí, de sete a dez annos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, collabora na cultura. Tem a altura de urna enxada e a utilidade de um homem. Sahe de madrugada, recolhe ás trindades, com o seu día rudemente trabalhado. Mandal-o á escola, de manhá e de tarde, umas poucas de horas, é diminuir a forga produc­tora do casal. Um alumno de mais na escola é assim um braço de menos na lavoura. Ora urna familia de lavradores nao pode luxuosamente diminuir as suas forjas vivas. Nao é por o filho saber soletrar a cartilha que a térra Ihe dará mais pão. Portanto tiram a crianza á escola para a empregar na térra.
O remedio a isto seria a criagáo de cursos nocturnos.
Á noite, o campo restituiría a crianza á escola. Os cursos nocturnos eram outr'ora exclusivamente para os adultos que tinham o seu dia tomado pela lavoura ou pelo officio. No emtanto n'um paiz pobre, como o nosso, de pequena cultura e de pequena industria, a crianza trabalha quasi tanto como o homem. O filho tem o seu dia tomado pelo mesmo labor do pai. Os cursos nocturnos deveriam ser sobre-tudo para elle—senão para ambos.
Ora sabem quantos cursos nocturnos havia em Portugal em 1862?—62!
Em Italia, paiz de populacáo apenas quintupla, e cuja instruccáo se arrasta vagarosamente, havia — 5:000!
Sabem quanto todos os municipios juntos, os trezentos municipios do paiz, dáo para os cursos nocturnos, suprema facilitacáo da instruccáo? 1:200$000 reís!
Sabem quanto da o Estado para esses 62 cursos ? 240$000 reis para os cursos nocturnos! 3$890 reis a cada curso! Pouco mais de tres quartinhos! É com estas despezas desvairadas que se fazem as bancarrotas desastrosas!
Mas nao é tudo! Em 1867 o ministro do reino promoveu enérgicamente a criacáo de cursos nocturnos. Fez-se um esforgo arquejante, e conseguiu-se, depois de mezes prolon­gados, criar 545 cursos! As cámaras, no primeiro enthusiasmo, prometteram magnánimamente, para auxiliar estas criações —12:000$000 reís. Pois bem, sabem o que succedeu? Mezes depois, as cámaras negaram-se a continuar as dotações!
Algumas mesmo nao chegaram nunca a pagal-as!
Outras nao quizeram satisfazer ao professor os ordenados ja vencidos!
N'um districto, no bestial districto de Evora, dos 18 cur­sos nocturnos que se abriram, restavam apenas, mezes depois, 3!
No districto de Ccimbra (oh lusa Athenas!) de todos os cursos que havia, nao resta va, passados mezes—nenhum!
Últimamente, em Peniche, os cursos nocturnos eram frequentados por 700 alumnos. A hedionda cámara fechou-os todos!




Dos 545 cursos que se conseguiram criar em 1867, res­tara menos de 100!
Que Ihes parece, meus senhores, esta singular infamia ?
Oh, nossa patria! Deus na sua justiça te dé uma boa e feroz tyrannia, que te deite nas palhas das cadêas, te vergaste nos velhos pelourinhos que ainda existam, e te enfor-que ñas través apodrecidas das fórcas de outr'ora!
Outra das vergonhas d'esta situação é o professor.
O professor de instruccão primaria é o homem no paiz mais humildemente desgranado, e mais cruelmente desattendido.
Sabem quanto ganha una professor de instruccáo prima­ria? 120$000 reis por anno, 260 reis por dia! Tem de se alimentar, vestir, pagar urna casa, comprar livros, e quasi sempre comprar para a escola papel, lapis, lousas, etc. — com treze vintens por dia. Note-se que, para a alta moralidade da sua missão, o professor deve ser casado. Pois bem, para criar urna familia — treze vintens por dia!
Mas oucam! Ja em 1813 a junta directora dos estudos pedia ao governo que, pelo menos, désse aos professores pri­marios 200$000 reis. Pedia-se isto ha 60 annos! A junta dizia, enérgicamente: «decidamo-nos; sem ordenados sufficientes nao ha professores idóneos.» Em 1813, 200$000 reis para um professor era considerado pelas repartições compe­tentes um ordenado—apenas sufficiente. E em 1872, com o extraordinario augmento dos precos, a triplicada carestía da vida—o professor tem ainda de ordenado os velhos 120$000!
Note-se mais! Ha 35 annos, Rodrigo da Fonseca Maga-Iháes, considerando que o professor nao podia viver, nem



educar-se, nem aproveitar, com o ordenado avaro do antigo régimen—determinou que os professores de Lisboa tivessem 400$000 reís, e os das outras térras 250$000 reis. Pois bem: d'ahi a tres mezes essas medidas racionaes e inevitaveis fóram abolidas! Determinou-se até que aos professores nao fóssem pagos os ordenados vencidos — e arremessou-se de novo, violentamente, o professor para a indigencia!
Além d'isso o professor de instruccáo primaria nao tem carreira. Está fechado no seu destino como n'uma desgraca murada: crescer-Lhe-háo os filhos, vir-lhe-háo os cabellos brancos, terá educado geracóes, e continuará sem esperanca de memoria a soffrer dentro dos seus 120$000 reís! A falta de carreira é a extincção do estimulo, a petrificacáo da vontade, o abandono do ser á fatalidade, á rotina e á iner­cia. O homem assim nao procura progredir: embrulha-se na somnolencia do seu officio como quem se accommoda para a eternidade.
Urna eternidade de 120$000 reís! E aínda d'este estreito salario tem quasi de sustentar a escola. O alumno pobre so acceita o ensino absolutamente gratuito. Se tem de comprar pennas, lapis, lousa, pauta, papel — abandona a escola. O professor é forcado a pagar estes apetrechos, de outro modo desertam-lhe a aula, e o vazio da sua escola seria o fim do seu salario.
Accresce que o professorado é uma alta, difficil sciencia que se necessita apprender. É esse o fim das escolas normaes — apprender a ser mestre. So a Italia, tem hoje ja 91 esco­las normaes. Sabem quantas havia em Portugal? Uma. E sabem o que fez o governo para seguir esse movimento civilizador e fecundo, que por toda a parte multiplicava as Escolas Normaes? Correu sobre a única que tinha-mos e — extinguiu-a! É verdade, meus senhores, extin-


guiu-aí Déra ella, no pouco tempo que viveu, 91 professo-res, todos aproveitados pelo Estado — porque 70 regiam aínda ha pouco escolas publicas, e o resto occupava-se no ensino livre!
Este professorado quasi sem salario, de todo sem car-reira, sem apprendizagem normal, cria a seguinte situíi^áo:
Na ultima inspecc.áo — d'entre 1:687 professores, so fóram encontrados com habilitares literarias 2631 E so fóram julgados zelosos—172!
Que vos parece, patriotas ?




A escola por si offerece igual desorganizado. Os edificios (a nao ser os legados pelo conde de Ferreira, que ainda quasi nao funccionam) sao na maior parte urna variante torpe entre o celleiro e o curral. Nem espaço, nem asseio, nem arranjo, nem luz, nem ar. Nada torna o estudo táo penoso como a fealdade da aula. Nao pedimos de certo para uso do A B C os classicos jardins d'Armida: mas está na mesma essencia da organizado dos estudos a boa disposição material do edificio escolar. Sobretudo nas aldeas é quasi impossivel attrahir ao estudo, n'uma saleta tenebrosa e abafada, crianzas inquietas que veem do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola nao deve ter a melaneholia da cadéa. Pestallozi, Froebel, os grandes educa­dores, ensinavam em pateos, ao ar livre, entre arvores. Froebel furia alternar o estudo do A B C e o trabalho manual; a crianza soletrava e cavava. A educação deve ser dada com hygiene. A escola entre nos é urna grilheta do abecedario, escura e suja: as crianzas, enfastiadas, repetem a iíqüo, sem vontade, sem intelligencia, sem estimulo: o professor domina pela palmatoria, e põe todo o tedio da sua vida na rotina do seu ensino.
Além d'isso, de 1:687 (como viram), so 172 fóram achados competentes!
É que ha um outro mal terrivel—a falta de inspecção. A inspecção é a consciencia publica da escola. Sem inspecção, —o professor que nao tem ordenado sufficiente, nem destino garantido, nem estimulo efficaz, desleixa-se por falta d'interesse, e a escola desorganiza-se por falta de direcçáo. É o que se da por todo o paiz. As escolas estáo abandonadas á indolencia do professor: e o professor está abandonado á desesperanca da vida!
Sabem como é feita a inspecção ?
Em cada districto administrativo ha um commissario dos estudos que tem por anno, para inspeccionar as escolas do seu districto, a gratificacáo de—120§000 reis. Ordinariamente é um professor do lyceu ou o reitor. Isto vigora desde 1844. Ora em 1854, o ministro do reino dizia á cámara dos deputados, n'um relatorio:—«os commissarios dos estudos, ocupados na direcção dos lyceus, e nas regencias de cadeiras, nao curam nem podem curar da visita e inspeccáo das escolas prima­rias !» É pois o Estado que claramente condemna o régimen estabelecido em 1844. Pois bem, ha perto de 20 annos que esta sentenca condemnatoria, da inspeccáo dos commissarios, foi lavrada pelo governo—e ainda existe hoje, em 1872, a inspeccáo pelos commissarios á moda de 1844.




Eis, resumidamente, o estado da instrucçáo.
2:300 escolas n'um paiz de 4 milhóes de habitantes!
De 700:000 crianzas a educar, apenas se encontrara 97:000 ñas escolas! D'estas 97:000 apenas se apuram 1:940. Por-tanto de 700:000 crianzas a educar — educa o paiz 1:940!
Sendo indispensaveis os cursos nocturnos—criaram-se 545. Hoje restam 100!
Os professores teem em 1872 o ordenado de reís 120$000, — que ja em 1813 era julgado absolutamente insufficiente!
So com boas escolas normaes se podem criar bons pro­fessores. Havia 1 em 68. Foi extincta! (Tenta-se agora criar 5).
De 1:867 professores, fóram julgados com habilitares literarias 263—e zelosos 172!
As escolas sao curraes de ensino!
InspecQáo, nao ha. Ja em 1854 se queixava d'isso o ministro do reino! Estamos em 1872!
Eis aqui o estado da instrucção publica em Portugal, nos fins do seculo xix (J).
A instruc^áo em Portugal é urna canalhice publica!
Que o actual governo volte os seus olhos, um momento, para este grande desastre da civilização!
(!) D'esta indifferenca profunda e bestial que ha pela instruccáo, deve-mos exceptuar os excellentes trabalhos do Snr. D. Antonio da Costa. Os seus livros, escriptos com urna exacta sciencia e com um altivo sentimento, sao o protesto da civilizaçáo e a desforra do espirito.