quarta-feira, setembro 01, 2010

FÉLIX LICHNOWSKY: descrição do Mosteiro de Alcobaça,1842


A viagem nos séculos XVIII e XIX esteve muito em voga entre as elites aristocráticas da Europa e pode dizer-se que esta se associava à formação do gentleman, que não era mais do que o adulto delicado, elegante e cosmopolita. Este personagem foi muito popularizado no séc. XVIII, na Inglaterra vitoriana, como a literatura nos revela. No caso dos jovens aristocratas, as viagens, alicerçava-os no contacto com o mundo real e eram um complemento da educação para além da vida académica e livresca, e assinalava a entrada do jovem no mundo adulto, como se a viagem fosse o rito de iniciação entre aristocratas.
Mas, as viagens não tinham só fim educativo e complementar para jovens distintos; muitas destas viagens eram feitas com fins comerciais e militares e foram precisamente os aspectos económicos que trouxeram a Portugal o príncipe Felix Lichnowsky. As experiencias militares teve-as na vizinha Espanha, nas guerras Carlistas. Na sua biografia consta ainda que se dedicou à política e foi um excelente parlamentário, exercendo em vários países europeus. Na Prússia, onde nasceu e mais tarde na Alemanha, desenvolveu actividades ligadas à economia e à política externa (com bastante habilidade) de forma muito experimentada.
Terão sido estas razões que em 1842 levaram D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha-Kohary, seu conterrâneo e marido da rainha D. Maria II, a convidá-lo a vir a Portugal para analisar a situação económica e politica portuguesa e assessorá-lo. O país estava mergulhado numa depressão derivada do enorme endividamento de Portugal à Inglaterra sua aliada de sempre.
No seu parecer, o príncipe Lichnowsky fez recomendações para que Portugal diversificasse o seu comércio com outros países para não ficar cativo comercialmente de Inglaterra, que no seu parecer derivava do Tratado de Methuen entre os dois países. Chocou-o também a miséria em que vivia o povo português e o atraso flagrante de todo o país, onde só algumas zonas do litoral tinham capacidade para exportar e explorar parte dos seus parcos recursos. A análise de Lichnowsky é um mosaico interessante do país numa época e revela aspectos ainda hoje visíveis, como as assimetrias entre litoral e interior e as comunicações. Estas impressões ficaram expressas no livro “Portugal: Memórias de 1842”. Que foi publicado um ano depois da visita que nos fez entre 24 de Junho e Agosto de 1842. É desse livro que extraio uma passagem dedicada a Alcobaça, uma povoação onde se vinha apenas para ver o mosteiro e partir logo de seguida tal como ainda hoje se faz. Ficar era, ao que parece, um suplício e os atractivos, nenhuns. Apesar desta ideia do “ver, olhar, andar e nada gastar” estar presente em quase todos os escritos dos estrangeiros e nacionais que visitaram Alcobaça e se mantém no turismo da actualidade, o facto nunca incomodou ninguém para alterar este princípio em beneficio da povoação do concelho e pessoas. E continua a não incomodar, porque parece suficiente ter esplanadas, cadeiras, areais e insignificâncias similares, que dão para ver, comodamente sentados, os turistas passarem ao longe. É por efeitos destes que os encantadores de serpentes se vêm sucedendo de forma dinástica, em benefício pessoal e dos compagnons de route, mas em prejuízo da povoação e do concelho, impunemente.




Texto do príncipe Felix Lichnowsky sobre o Mosteiro de Alcobaça

Nessa tarde chegámos a Alcobaça, que fica a três léguas da Batalha. Alcobaça e Batalha são os nomes que usualmente são pronunciados pelos portugueses e pelos estrangeiros quando se trata de urna digressão no interior do país, ou quando se vem a falar acerca das suas coisas notáveis; contudo, é pena que estes dois pontos capitais da grande história portuguesa se achem tão perto um do outro; porquanto necessariamente um deles deve enfraquecer a impressão do outro. E o que acontece principalmente quando se vem da Batalha. Apesar de grandes recordações históricas e poé­ticas, Alcobaça perde muito na comparação que inevitavelmente tem de fazer-se, quando ainda se conserva profun­damente gravada a lembrança da régia Batalha. O túmulo da formosa D. Inés e de seu esposo, D. Pedro I, que o amor tornou cruel, é naturalmente a primeira coisa em que se pensa em Alcobaça, onde as sepulturas, como geralmente em todo o Portugal, são objectos de grande consideração, grande principalmente em relação ao quanto é apoucado o presente; todavia, o exterior de Alcobaça não corresponde de modo algum a sua alta antiguidade, a sua celebridade e as grandes recordações que se ligam ao seu nome.

Esta abadia cisterciense foi erigida por D. Afonso Henriques em memoria da tomada de Santarém, como o indica na denominada sala dos reis a noticia da fundação, que se acha traçada em azulejos, e a qual contém um anátema contra aquele de seus sucessores que tratasse de abolir o mosteiro. Acha-se também ali o célebre documento que tem dado que pensar a muitos historiadores e pelo qual D. Afonso Henriques declara o seu reino tributário ao Convento de Clairvaux, segundo se pretende, em paga da intercessão de São Bernardo em Roma. Em contraposição a estes significativos monumentos dos primeiros períodos do reino de Portugal, a facha­da do mosteiro corresponde ao pensamento de urna edificado do último século. A parte central é formada por urna igreja flanqueada de duas torres e cujo frontão sustenta urna grande imagem de Nossa Senhora; de uma e outra parte da igreja prolongam-se dois corpos laterais de grandes dimensões, de 18 janelas de comprimento e de 1 andar de altura, que con­tém os aposentos do mosteiro, e semelham de algum modo a quartéis de tropa. Tudo se acha em estado de grande deterioração, principalmente os alojamentos do mosteiro; a igreja, para onde se entra subindo alguns degraus, é alta e vasta, de um estilo normando -gótico puro e simples, e construída com a mesma pedra branca empregada na Batalha. Um grande espelho (rosace) acha-se sobre a porta principal e, semelhante a um caleidoscópio, é cheio de vidros de varias cores. Na igre­ja não há obra alguma de escultura, a excepção de um órgão de madeira; e, como em todas as igrejas de Portugal, não se encontra ai também nenhuma estátua, nem quadro. Cinco capelas colaterais no cruzeiro, com pesadas douradoras em madeira, um altar-mor branco e dourado com figuras de pau, que se nao podem chamar estatuas, e tendo a roda 10 grandes colunas jónicas, formam todo o ornato desta igreja, aliás nobre, formosa e de mérito arquitectónico. Um sol, ou glória dourada e colossal, que por trás do altar-mor se prolonga em todas as direcções, não se pode dizer que tenha notável beleza, porém produz grande impressão, principalmente quando, ao descer o Sol ao horizonte, essa grande massa brilhante se ilumina e cintila. Em geral nesta igreja tudo parece dis­posto com o fim de produzir efeito; deste modo, por detrás do altar-mor, e em semicírculo, acham-se, em 7 nichos, ou capelas, outros tantos altares, que se conservam obscuros e que, através de uma grade de ferro, se observara como sepul­tados numa profundidade; é isto de um efeito singular, e parece de algum modo urma ilusão óptica. Ali repousa tam­bém o primeiro abade de Alcobaça, irmão do fundador.
Visitamos depois algumas capelas, uma das quais, for­mando notável contraste com a igreja, é coberta por toda a parte com as mais ricas esculturas e árvores com folhas e frutos; outra, muito antiga, é inteiramente dourada e cheia com alguns centenares de bustos de madeira pintados, que são efígies de santos, que cobrem todas as paredes como se fora um gabinete de historia natural e trazem sobre o peito bocetas de vidro, onde se acham relíquias; algumas destas figu­ras, que se achavam mais no interior, foram dali arrancadas pelos franceses, que esperavam poder nelas encontrar tesouros; porém, como só achassem pequenos fragmentos de ossos, deixaram intactas todas as outras. Numa grande sacristia meio queimada, achei notável unicamente um tecto muito belo, azul e branco com rosas douradas.
Ultimamente, para concluir as nossas investigações, viemos (3) ao carneiro, ou antessala, onde repousam D. Inês e D. Pedro. Em frente um do outro, acham-se dois sarcófagos de mármore branco de 16 palmos de comprimento, 7 de alto e 5 de lar­gura; são ambos cobertos com os mais delicados arabescos e altos-relevos; as figuras dos dois amantes, de grandeza mais que natural, estão colocadas, por ordem expressa de D. Pedro, com os pés de urna contra os da outra, de maneira que no dia de Juízo, se ressuscitarem na mesma posição, vêem-se imediatamente um ao outro, logo depois de terem visto o Céu. D. Inês tem um vestido franzido, cujas mangas curtas deixam ver dois braços redondos que se cruzara sobre o peito; as mãos são compridas, estreitas, mas pequenas para a grandeza da figura; uma delas tem calçada uma luva sem dedos; o corpo do vestido é justo e preso por meio de ala­mares e botões antigos, a semelhança dos da Hungria; com uma das mãos pega num fio de pérolas que lhe cinge o pescoço, e na outra tem uma luva. Como a descortesia dos fran­ceses não poupou nem o nariz daquela formosa dama, é impossível formar urna ideia completa das suas feições, as quais o artista (que era contemporâneo) manifestamente quis representar belas; o rosto é algum tanto cheio, mas não deixa de ter graça, as orelhas estão quase inteiramente cobertas por um toucado muito justo; uma pequena boca e uma covazinha na barba dão a essa fisionomia de pedra um não sei quê de chistoso. Quando se reflecte que el-rei D. Pedro, que seguramente era entendedor na matéria, mandou cinzelar à sua vista este mausoléu, deve presumir-se que pelo menos haverá alguma semelhança com o original. Tem na cabeça urna coroa real, e superiormente estende-se um pequeno baldaquino; seis pequenos anjos estão dispostos em torno de D. Inês, protegerá a sua cabeça, fazem mover turíbulos e pegam na cauda do seu vestido. O túmulo é sustentado por seis figuras em forma de esfinges, das quais, porém, somente duas são de mulher; as outras apresentam rostos de homem com barba ou sem ela. Ao longo do friso alternam-se as armas reais portuguesas com os seis dinheiros da casa dos Castros. O sarcófago de D. Pedro é sustentado por seis leões; o seu rosto severo e barbado (ao qual felizmente deixaram intacto o nariz, alias bem feito) mostra as mesmas feições nobres e ternas que Ihe dão todos os retratos; é coberto por um longo trajo franzido, e com ambas as mãos pega na espa­da; os seus pés está deitado um cão da raça que em Inglaterra tem o nome do rei Carlos II; infelizmente falta urna parte da cabeça daquele formoso animal. As quatro faces de ambos os túmulos são cobertas de pequenos altos-relevos que repre­sentara o Juízo Final, o Purgatório, a Ressurreição e os padecimentos de muitos mártires; a execução destas obras indica de algum modo a infância da arte; geralmente poderão notar--se muitos erros artísticos, ou contra a verdadeira beleza, nestes dois monumentos; mas quem se lembrará de fazer tais observações ai, onde campeiam tão romântica poesia e, ao mesmo tempo, tanta verdade histórica?
Em alguns cantos do carneiro e da igreja acham-se também as sepulturas dos três filhos de D. Inês e de D. Urraca, esposa de D. Afonso II (em 1220), e muitos outros de mui pouca importância e que contêm infantes e infantas falecidos nos séculos XIII e XIV.35 Contudo, os dois mausoléus, célebres no mundo inteiro, tinham de tal sorte absorvido todo o interesse da nossa observação que aos outros somente pudemos conceder ligeira atenção. Uma coisa porém deve surpreender depois de uma tal viagem ao reino dos mortos, e vem a ser que em todo o país haja tantas sepulturas de reis espalhadas por toda a parte. A impressão torna-se absoluta­mente maior e mais solene, e é historicamente mais justo, e mais verdadeiro, que esses príncipes repousem onde quiseram repousar, onde lidaram ou triunfaram, ou onde fizeram (5) fundações : pára-se numa pequena povoação de urna montanha, ou numa solitária abadia, a fim de grave, conscienciosa e solenemente visitar a lousa de um rei, ou de um herói, que ai faleceu; enquanto os jazigos gerais, como São Dinis, a Capela de São Jorge e a dos Capuchinhos deixam frio o observador e chegam a enfadar depois de urna longa demora. Coimbra, Guimarães, Batalha, Alcobaça, e outros lugares que infelizmente não pudemos ver, conservarão provavelmente os seus túmulos reais, porquanto nenhum interesse momentâneo exigirá imperiosamente que o espírito de centralização se faça também extensivo aos mortos.
A hospedaria em Alcobaça era tão má que ainda durante a noite tivemos de partir, e, depois de uma marcha de três horas, chegámos à povoação, célebre pelos seus banhos, cha­mada as Caldas da Rainha, que tem a reputação de ser uma terra interessante, e onde obtivemos, em recompensa do nosso trabalho, a vantagem de mais algumas comodidades. Não era porém então a estação própria, e por isso o melhor que pudemos fazer foi montar de novo a cavalo, logo depois de algumas horas de descanso. Caminhámos com vento, chuva e um tempo fresco, por urna estrada sofrivelmente calçada e através de um território agreste, coberto de pinheiros e mato, até que finalmente chegámos a Vila Nova da Rainha, estação superior dos vapores do Tejo, onde o Sertorius nos recebeu e nos desembarcou em Lisboa, ainda antes de findar a tarde.