terça-feira, setembro 28, 2010

1873: Alcobaça e Alcobacenses vistos por um autóctone

Foto de Francisco Zagalo



O texto que abaixo publico é um extracto de um livro singular, que considero dos mais interessantes que se escreveram sobre Alcobaça após a saída dos monges, e que é pouco conhecido pela maioria das pessoas da terra.
Na sequência dos Olhares de Estrangeiros em tempos idos sobre Alcobaça, que venho publicando conforme a minha disponibilidade, decidi incluir a visão de um nosso conterrâneo, por ser actual em alguns aspectos e demonstrar como Alcobaça se mantém parada no tempo. É um olhar cirúrgico que deveria fazer reflectir.
O conterrâneo em causa é Bernardino Lopes de Oliveira. Um nome conhecido, mas que poucos saberão quem foi ou o que fez.
Antes de prosseguir esta introdução do meu comentário, devo dizer que o extracto é retirado do livro a “ História da Misericórdia de Alcobaça”, publicado em Alcobaça em 1918, oito anos após a morte do autor, Francisco Zagalo. Um destacado médico proeminente da vida social e cultural de Alcobaça no virar do S. XIX para o S. XX, cuja memória foi perpetuada na toponímia da povoação. Precisamente numa artéria que nunca mais tem os melhoramentos anunciados vezes sem fim pelo elenco camarário, como remate que falta na configuração do terreiro que foi feito em frente ao mosteiro.
Bernardino Lopes de Oliveira tem também o seu nome na toponímia de Alcobaça, e como outros alcobacenses abastados do século XIX, deixou-nos uma enorme casa, que é em termos arquitectónicos uma das mais significativas da povoação no panorama da arquitectura da terra. De linhas sóbrias e estilo neoclássico tardio, está longe do género abrasileirado e neocolonialista, tão típico e adoptado por alguns novos-ricos de então, como se podem ver exemplos na povoação. Bernardino Lopes, não optou pela ostentação, apesar de ter sido emigrante de sucesso no Brasil, onde amealhou uma fortuna considerável.
Pela sua experiência vivida no estrangeiro e por um cosmopolitismo que demonstrou em atitudes políticas posteriores, quis dotar Alcobaça de um ar moderno, longe daquele que o chocara numa viagem para matar saudades da terra e que era do mais atrasado. Custou-lhe ver o aspecto das pessoas e das casas da povoação, que eram da “mais repugnante decadência” e o “estado intelectual e moral dos moradores (…) em geral ignorantes e grosseiros”. Mais tarde, quando decidiu voltar para Alcobaça, insere-se na vida social, cultural e política da terra, promovendo actos e associações, onde se destacam a antiga “Associação Recreativa Clube Alcobacense” e o “Clube de leitura” anexo a ela. Promoveu o teatro, foi provedor da Misericórdia, vereador da Câmara e seu presidente em 1873. A ele se deve, enquanto provedor da Misericórdia, a iniciativa da construção do Hospital que tem o seu nome. Esta é uma das maiores infra-estruturas sociais de que alguma vez se dotou a terra após a saída dos monges.
Na vida política cedo se empenhou em resolver os problemas que impediam a povoação ter uma imagem condigna com os seus pergaminhos. Entre esses problemas, ele considerava ser a pouca urbanidade dos seus habitantes, a sujidade que se via a cada passo pelas ruas, a maledicência, os vícios da influência na politica, o interesse mesquinho e o amiguismo, que deturpavam a coisa pública, já que uns quantos beneficiavam do município em detrimento dos demais.
Apesar dos anos decorridos, esta última realidade ainda não foi banida da terra, e o aspecto de povoação abandonada e decadente continua. São bem visíveis por todo o lado, nos imóveis e lojas, tabuletas e cartazes a anunciar “trespassa-se”, “vende-se” ou “aluga-se”, como se não se quisesse viver por aqui ou quisessem abandonar o lugar. As tabuletas que adornam janelas, portas, varandas , montras… dão um ar pitoresco à terra e os mesmos dizeres quando são pintados directamente nas paredes dos próprios edifícios, à mão livre, tornam-se mesmo patuscos. Suponho até que a Câmara irá brevemente promover um concurso sobre “ o slogan mais bem pintado” ou “ o lugar mais imaginoso para se expor uma tabuleta". Tudo com direito a um subsídio e um júri composto pelo PS e a CDU, as associações de defesa do património e os “defensores do mantenham isto assim”. A esta imagem da vitalidade local, juntam-se ainda as muitas casas e paredes em ruínas e leprosas, escaqueiradas, que se vêem a cada passo na povoação e que servem, nalguns casos, de mictórios e outros propósitos afins, e onde abundam dejectos, lixo, maus cheiros, ratazanas e bicharada rastejante que promovem uma vida salubre e atraente para quem vive nas imediações ou passa por lá, especialmente crianças e idosos.






Mas como no presente, a vida política em Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira, não seria o melhor meio para alguém de bem ajudar uma terra a prosperar e a elevar o sentido crítico dos seus conterrâneos. Bernardino Lopes de Oliveira, além de dotar o governo da edilidade de um pragmatismo, até então inexistente, e que muniu as contas públicas de racionalidade, como atestam as actas da câmara no período em que a presidiu, tomou ainda decisões importantes, mas não corrigiu os vícios existentes numa cultura politica , que por simpatia não é muito semelhante à de hoje.
Por isso, apesar do enorme prestígio que desfrutou na condução da coisa pública, não foi o suficiente para ser eleito num segundo mandato, ficando impossibilitado de continuar projectos já delineados que dotariam Alcobaça de outro Glamour que continua a não possuir.
Quem sucedeu a Bernardino Lopes de Oliveira, fez precisamente o contrário, como é costume à boa maneira das oposições TUGAS, paralisou projectos e montaram-se clientelas “ com favores concedidos à custa do cofre municipal”, como chegou a afirmar.
Alcobaça parece dar-se mal com gente séria, altruísta e de visão, onde se favorece politicamente, a manha e o interesse opaco.
Quanto à falta da crítica avisada, a tanto almejava Bernardino Lopes, ela continua a não existir, senão não teríamos ouvido quase 150 anos depois, Augusto Mateus afirmar: “Alcobaça não tem massa crítica necessária” (in RC 27/9/2007).


1873: Alcobaça e alcobacenses vistos por um autóctone





Rossio de Alcobaça no tempo de Bernardino Lopes de Oliveira
Igreja Nova ao fundo, desmantelada em 1915
No seu lugar existem os actuais CTT.

"De há muito que se vinha reconhecendo a insuficiente capacidade do hospital, e nos últimos anos os progressos nosocomiais o haviam condenado sob o ponto de vista higiénico.
Foi o que determinou a comissão administrativa da Misericórdia em 6 de Janeiro de 1875 a deliberar pedir ao Governo a concessão da parte norte-nascente do Mosteiro junto da livraria, para ai se instalar o hospital, e no dia 1 de Fevereiro do mesmo ano pedir antes para o mesmo fim a livraria e suas dependências.
Foi pelo mesmo motivo que a comissão administrativa da Misericórdia em 23 de Novembro de 1883 deliberou mandar proceder a estudos para se fazer mais urna enfermaria no celeiro.
Nem a livraria foi concedida, nem a enfermaria foi feita.
Em 1884 foi criado e colocado em Alcobaça o regimento de cavalaria nº. 9 e isso determina uma tal afluência de doentes que, apesar dos doentes civis não serem recolhidos no hos­pital e serem tratados no domicilio, estava o hospital sempre pejado e por vezes tão acumulado com adicionamento de leitos suplementares nas enfermarias e ocupados todos os seus compartimentos, inclusive a capela, que foi profanada, que as suas condições higiénicas se tornaram péssimas e ameaçavam determinar dum momento para o outro alguma catástrofe pa­vorosa.
Ponderado isto pelos médicos e reconhecido pelos irmãos de cápela no seu exercício de enfermeiros-móres, a comissão administrativa, não podendo aproveitar o antigo celeiro, já transformado cm habitação dos enfermeiros, resolve na sua sessão de 2 de Janeiro de 1886 adquirir os materiais necessários para a construção duma enfermaria no quintal do hospi­tal e proceder a essa construção por administração.
No sessão extraordinária de 18 do mesmo mez e ano os facultativos do hospital, consultados pela comissão, foram de opinião que a enfermaria projectada ia agravar as más condições higiénicas do hospital e com ela se ia desperdiçar urna quantia que faria falta ao construir-se um hospital novo, sem em nada valorizar o edifício hospitalar quando vendido a um particular, sendo este o destino que se Ihe devia dar, quando fosse possível, pois que, sendo urna boa casa de habitação para uma família, era péssima para hospital. A mesa deliberou, pois, sobreestar na construção da enfermaria projectada e incumbiu os facultativos de Ihe indicarem os requisitos a que devia satisfazer o hospital a construir.
Era o ponto em que estava tão momentoso assunto quando entrou em exercício em 19 de Julho de 1886 a comissão admi­nistrativa que Bernardino Lopes de Oliveira começou a pre­sidir em 3o de Agosto.
Esse assunto havia saído da área restrita da mesa administrativa da Misericórdia para o largo âmbito do publico, que conseguiu interessar, pelo que ele importava á sorte dos des­validos que a todos condoía.
Todos lamentavam que os desventurados torturados pela miséria e pela doença se vissem privados, pela pouca capacidade do hospital, de aproveitar o seu conforto e a metódica e solicita aplicação dos medicamentos e da dieta ai feita para mais facilmente recobrarem a saúde e tornarem-se cidadãos validos, amparo de sua família indigente, e que, quando lá internados, Ihes proporcionasse condições desfavoráveis á rá­pida restauraçáo da vida e da saúde. Anteviam, pois, a necessidade impreterível de se proceder imediatamente á construção dum hospital que, pelo local onde fosse situado, pela sua ampla capacidade, grande cubagem e franca ventilação, podésse comportar todos os doentes que necessitassem internar-se nele e lhes facultasse a higiene promotora do seu rápi­do restabelecimento.
Mas a modéstia dos recursos da Misericórdia que Ihe permitia, quando muito, custear o tratamento e curativo dos doentes, fazia arredar a ideia de o construir á custa do seu fun­do permanente que, por esse modo desfalcado, não daria posteriormente rendimento suficiente a custear o tratamento dos doentes. E não devia pelo presente sacrificar-se o futuro, ori­ginando embaraços permanentes e irremediáveis. Devia, pois, proceder-se á construção com receita estranha ao fundo per­manente da Misericórdia: com subsídios do Estado e com do­nativos particulares. Subsidio do Estado em madeiras do pinhal nacional antevia-se a possibilidade de o alcançar suficien­te, mas alcancar da subscrição particular a quantia de réis 6.ooo $ooo, em que a modesta aspiração dos que mais desejavam a pronta realização de tão momentoso e urgente melhoramento cifrava indispensável para o efectivar com as madei­ras, concedidas pelo Estado, é que se julgava ser quantia muito superior á que era de esperar produzisse a subscrição em terra tão pequena como Alcobaça. Demais afigurava-se que esta seria muito modesta, apesar dos mais acendrados sentimentos de altruísmo que animavam os moradores de Alcobaça e da sua relativa opulência, por a orientado até ai dada á administração da Misericórdia, tornada um joguete das facções políticas, suscitar nos alcobacenses sobressaltada desconfiança.
Assim os mais devotados propugnadores da breve realização desse melhoramento viam-se enleados na mais invencível impotência e limitavam-se a aguardar numa anciosa espectativa por que se clareasse o horisonte muito obscurecido por nuvens caliginosas, sem anteverem algum vento impetuoso e benéfico que as dissipasse.
A entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia fez entrever um clarão de esperança que alentou as almas bem formadas e as aprestou a entrarem em campanha, na mais gloriosa e benéfica das campanhas, quando se ensejasse ocasião oportuna.
Necessitamos tracejar em rápido escorço a biografia de Bernardino Lopes de Oliveira para compreenderem, os que o não conheceram, a razão por que a sua aparição na administração da Misericórdia suscitava tão lisonjeiras esperanças.
Bernardino Lopes de Oliveira, nascido em 4 de Novembro de 1832 de pais sem fortuna, que proviam as necessidades da família numerosa com o mais áspero e duro mourejar, foi de Alcobaça, sua terra natal, para o Brazil em Agosto ou Setembro de 1847, em idade de 14 anos. Mal sabia ler e escrever e ainda não havia recebido sequer as primeiras noções duma profissão que o habilitassem a grangear a própria subsistência. Levava consigo um dote precioso que foi sempre o traço sa­liente e predominante do seu carácter. Lograva urna energia inquebrantável, uma vontade de ferro, que o empenhava sem uma vacilação, sem a sombra sequer duma hesitação, na realisação dum propósito que tinha em mira, prosseguido sempre tenazmente, aproveitando as circunstancias favoráveis e não desalentando com as adversas, até á sua consecução final. Parecia convicto e demonstrou cabalmente que querer é poder.
Foi, pois, para o Brazil, para o Recife, com o proposito de conseguir uma fortuna que Ihe permitisse viver desafogadamente e proporcionar igual desafogo aos seus, que estremecia, e cujo penoso viver o angustiava.
Desprovido de habilitações e sem protecção que o recomendasse, considerou-se feliz em ser admitido como marçano em um estabelecimento comercial. A sua submissão paciente aos mais duros encargos, a morigeração do seu proceder austero e impecável, e a Ihaneza e afabilidade prodigalizada aos fregueses em breve Ihe captaram a simpatia dos caixeiros e do patrão. Assim foi ascendendo com relativa rapidez a caixeiro e a sócio, e de sócio a comerciante independente.
Com as suas eminentes qualidades pessoais e com os su­bidos créditos que ele lograva na praça e que Ihe atraíam nu­merosa e valiosa freguezia do sertão, em poucos anos conseguiu ver realizado o seu almejado sonho. Aos trinta anos possuía já fortuna avultada.

Vem então, em 1862, pela primeira vez a Portugal, a Alcobaça, a matar saudades que o pungiam acerbamente, mas que ele havia comprimido emquanto não viu próximo da com­pleta realização o seu ideal.
Aquí, comparando as impressões indeléveis que a sua infância Ihe havia vincado na fantasia poetisadas pelos tons ró­seos da saudade, com a realidade, sofre uma cruel decepção. A vila de Alcobaça, outrora desdenhada pelos frades que só se preocupavam com a sua vivenda colossal e principesca, e pouco melhorada pelos que se Ihes seguiram no domínio e que só procuravam disfrutar o rendimento das esplendidas propriedades que os frades haviam fertilisado com o seu suor em outros tempos e ultimamente com a mais avançada cultura, estava um verdadeiro chavasca! Os prédios de arquitectura mesquinhamente tacanha, descurados, mal caiados, ofereciam o espectáculo da mais repugnante decadência, e as ruas da terra mal nivelada ou mal calcadas e o seu grande largo situado ao cen­tro, sem calcetamento, com o solo desigual cortado de bastantes gibas entremeadas de covas que, durante o tempo invernoso, se transformavam em verdadeiros atascadeiros, e atravessado por uma longa vala onde corriam a descoberto as enxurradas da chuva que felizmente vinham de vez cm quando fazer a limpeza de toda a espécie de imundicie que a cada passo e sem repressão alguma para ali era arrojada, davam uma triste ideia do estado de civilisação dos moradores. A divagação constante pelas ruas da povoação de todos os animais, e o mercado dos cevados no centro e o pejamento nos dias de mercado do local a ele destinado com os burros em que se transportavam os moradores das povoações rurais numa mescla pitoresca com os bipedes, mescla perigosa pela liberdade que disfrutavam os quadrupedes e com as manhas algo agressivas que alguns haviam adquirido, completavam os característicos duma povoação sertaneja, absolutamente alheia ao progresso e á civilisacáo. E este aspecto deploravel da vila era completado com o do seu Mosteiro. Completamente abando­nado após a supressáo e evasão dos frades, a povoação caiu sobre ele como um bando de famintos e, arrebatando-lhe tudo o que precisavam ou erri que supunham algum valor ou que Ihc despertava a curiosidade. Tiraram, onde Ihe aprouve, portas e janelas e cantarias, e, emquanto os livros não foram removidos para Lisboa, também eles foram alvo das suas depredações, e com tal inconsciência, que não subtraíam livros que os ilustrassem ou tivessem alta valia literaria, levavam o que infantilmente os recreava pelas gravuras ou pelas iluminuras que os ilustravam, e tão estupidamente, que truncavam obras, levando um ou dois volumes, e deixavam ficar os outros. Patenteava-se, pois, o Mosteiro em ruínas, mas não eram as ruínas vetustas determinadas pelo decorrer dos seculos que Ihes imprime uma feição pitorescamente poética, e sim as ocasionadas pela atabalhoada e selvática acção demolidora, que Ihes da um aspecto repelente. O estado intelectual e moral dos moradores condizia com o da povoação, sua fiel imagem. Em geral eram ignorantes, de trato grosseiro, e muitos suspiravam ainda com infinda sau­dade pela época fradesca, em que por módico preço obtinham a farta pitança das rações que, pela abundância, os abarrotavam, e, por vezes, os deliciavam com as delicadas iguarias com que os brindavam pelas festas conventuais. A convivência, pelo menos a convivência estabelecida para a troca recíproca de ideias e impressões, era nula, a não ser no sexo feminino das famílias abastadas, que na singeleza mais simpática dedicavam as tardes, passadas ora na casa du­ma ora na casa doutra, á palestra amena e afectuosa, que não as distraía dos lavores domésticos de costura a que se entregavam. Os homens, constantemente entregues á sua faina, reuniam-se algumas vezes, quasi sempre raro á noite, nas boticas ou em alguma mercearia mais em voga, para se entregarem á caustica mordacidade da má língua, conspurcando e esfacelando as vidas alheias. Isto com relação ás classes mais ele­vadas pela sua hierarquia social ou pela sua abastança de meios de fortuna. Das outras classes, os homcns dedicavam o tempo que Ibes sobrava do exercício da sua profissão artística ou agrícola á palestra nas tabernas, aquecida com o largo con­sumo de vinho, e as mulheres o que sobrava dos cuidados do­mésticos em que sempre foram exemplares, ao cavaco do soalheiro implacavelmente dilacerante para os ausentes. A educação, que se ministrava, presume-se pelos hábitos dos edu­cadores, cuja manutenção consideravam o supremo ideal a atingir.
Foi profundamente amargo o desconforto que produziu em Bernardino Lopes de Oliveira o reconhecimento do estado material e moral da sua terra natal, e essa profunda impressão determinou-lhe, após alguns dias de meditação, uma das suas resoluções inabaláveis e de que coisa alguma o fazia de­sistir.
Resolveu regressar ao Brazil para liquidar em curto prazo os seus haveres ou orientar a administração da sua importante casa comercial de fazendas sem a sua assistência, e voltar pa­ra Alcobaça, estabelecendo aqui a sua residência, e empenhar a sua energia e a sua fortuna no levantamento do seu nível material, intelectual, social e moral.
Resolveu e fê-lo.
De regresso definitivo do Brazil em 1864 estabeleceu a sua residência nesta vila e imediatamente poz por obra o seu propósito.
Havia um teatro mal instalado no refeitorio do Mosteiro. Promoveu que ele fosse reformado tal como agora se acha, que fosse dotado de pano de boca e de scenario, e que os amadores dramáticos, alguns bem distintos, que aqui havia, e que davam raras representares, se organisassem, recrutando mais pessoal, de modo a darem duas representações por mez. Promoveu a organisacão de bailes de mascaras animadissimos, brilhantes, e em que se mantinha todo o decoro com o mais meticuloso cuidado, como em um baile realisado em urna casa particular da mais severa honestidade. E para os facilitar e tornar mais atraentes mandou vir abundante e selecto guarda-roupa de Lisboa, que franqueava gratuitamente. Promoveu e foi um dos socios fundadores da associação recreativa Club Alcobacense, e do Gabinete de Leitura, dando muitos volumes emquanto a sua biblioteca esteve mal provida.
Em 1878 começou a fazer parte da Camara Municipal, de que era presidente, e que quasí sempre se conformou com a orientação que ele deu á administracáo municipal. Proveu mediatamente ao poiicíamento da vila e principalmente dos seus mercados. Fez remover o mercado do gado suino do cen­tro da vila para o seu extremo e já fóra dela, para a Roda. E determinou que não fosse consentido animal algum a diva­gar pela vila. E que nos seus mercados não fosse tolerado burro algum parado, sendo recolhido apenas a ele chegasse e o respectivo cavaleiro desmontasse ou a respectiva carga fosse arreada.
E não eram estas medidas de pequeno alcance e de fácil execução, como agora se nos afigura. A primeira foi recebida tão agressivamente que aliciou os principais partidarios da vereação que Ihe sucedeu com o carácter de completa reaccáo as suas medidas. O mercado de gado suino ainda voltou para o centro da vila, onde pouco se demorou, tão fortemente o bom senso impulsionou a opinião publica, reprovando essa reacção barbara. A ultima providencia concitou um temeroso tumulto, promovido pelos moradores das freguezias rurais, o qual se aplacou sem consequências de maior, graças á serenidade e intrepidez de Bernardino Lopes de Oliveira.
Estudando a administrado municipal de Alcobaça reconheceu que ela estava em um perfeito caos. Os melhoramentos custeados pelo cofre municipal eram efectuados não por serem os mais úteis e urgentes, mas por lograrem a recomendação dum valioso influente eleitoral, e por vezes eles eram mais em proveito dos influentes do que do municipio. Propoz e a Cámara sancionou com o seu voto que se investigasse quais os melhoramentos de que o municipio estava carecido, se mandasse proceder aos respectivos estudos e á elaboração das plantas e correlativos orçamentos. Que depois fossem classificados pelo seu grau de utilidade e de urgência, e que se fossem executando pela ordem dessa classificação e em conformidade com a verba disponível e não ao grado das influen­cias que os solicitassem. Fez uma administração impertubavelmente justa em que teve conscjencia de mclhorar consideravelmente o aspecto das povoações do concelho c as suas condicóes higiénicas. Não fez mais porque urna grande parte da receita disponível foi dispendida com os trabalhos preparato­rios para a execucáo dos melhoramentos, trabalhos de que os seus sucessores não fizeram caso, porque não lhes conveio adaptar o plano racional a que ele subordinava a sequencía da gerencia administrativa. E, terminado o trienio, não foi reeleito, apesar do grande prestigio que o seu proceder austero e sensato Ihe havia grangeado, porque os corrilhos políticos, saudosos das cadeiras senatoriais, onde com favores concedi­dos á custa do cofre municipal grangeavam muitos prosélitos, não consentiram que ele Ihes inutilisasse as artimanhas, se-guindo inquebrantavelmente o plano adoptado e que, se fosse proseguido, levaría com certeza Alcobafa e o seu concelho a estado de maior adiamamento do que está.
Com estes precedentes a entrada de Bernardino Lopes de Oliveira na administração da Misericórdia era de molde a esperar-se a sua reconstituição e o travamento da sua inegável e rápida decadencia. Receava-se sómente que o resto da comissão, constituindo uma grande maioria, e constituido por in­dividuos filiados na faccáo política dominante, não assentisse ao seu modo de ver e tolhesse o desenvolvimento da sua no­toria actividade e energia. Felizmente, assim não sucedeu. Ou porque se deixasse subjugar e arrastar pelo seu grande prestigio, ou porque antecipadamente houvesse sido pactuado tal proceder, como condição indispensavel para que Bernardi­no Lopes de Oliveira aceitasse o cargo para que foi nomeado, o facto é que a mesa trabalhou sempre de acordo e na melhor harmonia com o seu presidente, colaborando eficaz e dedicadamente na execução das propostas dele, por ela aprovadas.
Bernardino Lopes de Oliveira toma posse cm 3o de Agosto e imediatamente, de acordo com a mesa, convida os indivíduos mais em evidencia pela sua posição social e pela sua fortuna para se reunirem na casa do despacho da Misericórdia. Nessa magna reunião, onde se achavam indivíduos de to­das as parcialidades políticas, cxpoz Bernardino Lopes de Oliveira as más condicões de capacidade e de higiene do hos­pital, que, por isso, era forçoso proceder á construção de um novo, mas que a Misericórdia, pela modestia dos seus recur­sos, não podia levá-la a efeito. Que podia aplicar-lhe algumas sobras do seu rendimento e a receita proveniente do edifício que estava servindo de hospital, e talvez conseguisse do Esta­do algumas madeiras do pinhal nacional, mas que tudo isso era insuficiente para o levar a cabo. Tal empreendimento só­mente seria realisavel com a coadjuva^áo dos habitantes de Alcobaca expressa em largos donativos. Por esse motivo ha­via convidado os cavalheiros presentes para dizerem o que Ihes parecesse a tal respeito.
A assembleia unanimemente reconheceu a necessidade da construção do novo hospital e prontificou-se a contribuir com donativos para ela, dando um voto de plena confiança á mesa para tratar de tal assunto, procedendo á referida construção e solicitando os donativos quando Ihe parecessc oportuno.

Em 3o de Setembro, em sessão de mesa com assistência do administrador do concelho, previamente convidado, Bernardino Lopes de Oliveira propõe que se construa o hospital na Roda em local indicado pelos facultativos, pedindo-se á Camara a concessão do terreno, e que se elabore a respectiva planta, a qual o administrador do concelho se incumbiu de apresentar; que para a referida construção se destinasse o sal­do das gerências anteriores, a verba no orçamento destinada á construção da projectada enfermaria no quintal do hospital e 5oo$ooo réis do fundo permanente e o produto da renda do edifício onde estava o hospital, pedindo-se autorização para se efectuar essa venda, e que a mesa solicite donativos. Fui esta proposta aprovada por unanimidade.
Em 3 de Novembro o vice presidente participa que, havendo em nome do presidente solicitado da Câmara Municipal a concessão do terreno para edificação do hospital, ela o havia concedido por unanimidade na sua sessão de 10 de Outubro.
Em 16 de Fevereiro de 1887 foi presente á mesa a planta do hospital de Lamego, resolvendo a comissão que fossem consultados os facultativos acerca dela.
Em 7 de Março informa o presidente que os facultativos são de opiniáo que a planta do hospital de Lamego logra to­dos os requisitos exigidos pela sciencia, mas não se acha pela sua sumptuosidade e vastidão de harmonia com a capacidade que deve ter o hospital de Alcobaça, nem com os recursos de que a Misericórdia poderá dispôr, e eram de parecer que a referida planta fosse enviada a um arquitecto e juntamente a nota da capacidade necessária e dos recursos ao alcance da Misericórdia, para ele elaborar planta adequada. Por unani­midade deliberou a mesa que assim se fizesse.
Em 4 de Abril aprésenla Bernardino Lopes de Oliveirá um esboceto do futuro hospital da sua lavra, esboceto que alcançou a aprovação dos facultativos. A comissão delibera que seja esse esboceto enviado a um arquitecto para o transformar tecnicamente em planta definitiva.
Em 16 de Junho são presentes á comissão dois esboços de planta do hospital elaborados pelo arquitecto, sendo um com rez-do-cháo e primeiro andar, e outro em um só pavimento, tendo ao centro um andar superior para acomodações dos enfermeiros, optando os facultativos por este. A comissão deli­berou mandar organisar a planta em conformidade com este ultimo esboço." Francisco Zagalo op.cit. pp 239 a 247.

segunda-feira, setembro 13, 2010

INSTANTE E VERDADE


No primeiro quarto do século XX apareceram na Europa os regimes de massas que encontraram uma oposição por parte dos individualistas do pensamento livre e solto. A “rebelião das massas” foi atacada com armas e palavras até ao último quartel do século passado e esses sistemas foram vencidos e substituídos por outros regimes de massas; neles estamos mas não temos consciência disso. Até à revolução soviética e à fascista italiana, as pessoas acreditavam que tinham ideias e propunham-se ter ideais. Eram movimentos muito fecundos em todos os domínios, literatura, política (artes plásticas, cinema e teatro).
Os séculos XIX e XX manejavam-se com ideias, pensamentos e interrogações. Os partidos, tal como as pessoas, tinham vida interior. No presente viver não é integrar-se no tempo, mas deixar-se atropelar pelos seus furacões: a gritaria do momento. O presente transformou-se em cenário de um show vertiginoso que oferece apenas duas possibilidades opostas. Uma é a anomia, a passividade e a renúncia à interpretação. A outra é a participação pela embriaguez acelerada. Presentes estáticos ou velozes, mas nunca caminhantes. Hoje abjuramos da memória e da previsão do futuro. Elevámos o instante a verdade única, no altar das pressas e do efémero, banalizando o seu culto à espectacularidade do nada, mas também e sobre tudo pela ausência de uma sincronia e um espírito que aspire a compreender o seu tempo. O caminhante do pensamento vê-se privado de caminhos a troco de ser tentado com auto-estradas (não é neutro o símile “ auto-estradas da informação”). O grande sonho da comunicação já não é a biblioteca, nem sequer a videoteca, onde era possível demorar-se para observar os caminhos andados e os trechos a recorrer, como muito bem explicou Regis Debray. Antepusemos a difusão das mensagens à informação das mentes, tudo em proveito da emoção instantânea procurada pela fusão da imagem-som. A Vídeo-Esfera vai abolindo em nome desse falso presente que é o “directo”, as velhas mediações simbólicas, (a palavra, o escrito) e com elas as abstracções, as ideologias, a politica e até as suas derivações institucionais (partidos, sindicatos, escolas). Agora interessa ver rostos e não identificar identidades. Assistimos aos factos sem registá-los na experiência. O pequeno ecrã (televisão/internet) é a verdadeira instância de uma nova aprendizagem. E a ilusão da presença criada pelo directo preenche toda a aspiração de sabedoria. Neste campo radical da civilização que Paul Virilio denominou “a estética da desaparição”, espreita um perigo sobranceiro para a liberdade individual e democrática do sujeito. O “directo” na sua pressa representa a negação do eu que observa, evoca e compara; actua como um dispositivo externo mas ordenador das nossas vidas, que já não logram subtrair-se à lógica do imediato. Poderia dizer-se que ocorre e ocorre-nos só quando vem referendada pela câmara que estava aí no preciso momento, submetida pelo jornal à tirania do último acontecimento, coadjuvadas pelo integralismo técnico de uns meios cuja máxima aspiração consiste em mostrar o poder da sua presença. Com isto os regimes actuais de massas, que utilizam a etiqueta de democracia, descobriram a forma de nos fazer crer que se escolhe e pensa livremente, por cima das televisões, da imprensa adquirida em toda a sua verdadeira classe. Como se a comunicação social fosse o espaço onde se constrói o comum e este tivesse aí o valor de realidade. Neste tipo de regimes, a personificação simplifica o mundo e converte os acontecimentos em algo imputável. Aquele é mau, o outro é bom e aquele o dono do mundo. Condensam-se os acontecimentos até reduzi-los a um homem, a uma paixão supostamente explicável, a uma grandeza personificada que se pode admirar ou a uma mesquinhez com a qual se excita a indignação colectiva como se tem visto ultimamente com ameaças da queima do Corão. in Jornal das Caldas

terça-feira, setembro 07, 2010

Alcobaça segundo Miguel Unamuno


Miguel Unamuno nasceu em Bilbau e morreu em Salamanca (1864-1936). Nesta última cidade passou o período mais fecundo da sua existência entregue à sua cátedra de grego na Universidade, onde foi reitor desde 1902.
Dotado de um espírito de dimensões excepcionais, cuja valorização se pode fazer com maior justiça à medida que passam os anos e vamos relendo a sua obra, é considerado nos meios académicos e desde há muito tempo, uma das mentes mais profundas e originais da Europa. A sua obra foi traduzida em diversos idiomas.
Em termos de escrita abraçou quase todos os géneros: ensaio, poesia, teatro, romance e filosofia, deixando em todos eles a marca da sua forte personalidade.
Amigo e admirador do nosso país, visitava-o com frequência e fez belas descrições da sua paisagem e da alma portuguesa. Conviveu com personagens de vulto da vida cultural portuguesa, como Teixeira de Pascoais, Guerra Junqueiro e Manuel Laranjeira, com quem passou algumas temporadas de férias em Espinho.
Na troca de correspondência com aqueles, desde cedo manifestou a intenção de escrever um livro sobre a Alma Portuguesa, pois interessava-lhe estudar nos portugueses o “tédio” e o “pessimismo patriótico” que dizia estarem encardidos na sua alma, tal como ainda vemos nos “opinionmaker” dos nossos dias. Mas é nos versos de António Nobre que encontra esse fatalismo tão bem expresso: “ Amigos, Que desgraça nascer em Portugal”. E de Portugal, disse que era um país de Suicidas. Camilo, Antero e Francisco laranjeira atestam-no, entre muitas outras coisas.
A amizade que teve com Guerra Junqueiro terá sido uma das portas que o levou a descrever Portugal e os Portugueses de forma tão singular, e alguém já teve a coragem de dizer que “as páginas que nos deixou sobre o País, são do mais profundo que se escreveu sobre Portugal”.
“ Por terras de Portugal e Espanha”, foi publicado pela primeira vez nos anos 90 do século passado, na língua de Camões, e na nota de introdução justifica-se o atraso nestas palavras, que denotam claramente o que foram as afinidades entre os dois países e por cá muitos ainda vivem congelados no ano de 1385: “ Se as relações culturais luso-espanholas tivessem a dimensão imposta pela proximidade geográfica, a historia politica e cultural com significativos pontos comuns e o interesse num profundo conhecimento recíproco, há muito que este livro, em que a alma de Portugal é olhada com paixão, circularia entre nós e na nossa língua como obra indispensável para se conhecer não só a nação que éramos quando ele foi escrito como o que somos hoje” .
Viajante e curioso como foi, também visitou Alcobaça e deixou uma descrição particular do mosteiro, do caminho por onde passou no Valado dos Frades, onde chegou de comboio, e da hospedagem onde pernoitou. Segundo a correspondencia entre Unamuno e Manuel Larangeira, o texto de Alcobaça foi publicado em Buenos Aires (Argentina), no Jornal la Nación em 1909.
Tentei ver se os jornais locais, em Alcobaça), do ano de 1908, faziam mençãoda sua visitou à povoação, mas foi inglória a intenção. Apesar de Unamuno ser uma pessoa muito conhecido em Espanha e Portugal (privava com o rei a quem fazia discursos e já era reitor da Universidade de Salamanca), nenhuma referência lhe foi feita, mas ao contrário deparei-me com as miudezas de uma terra onde não se passava nada, adormecida na nostalgia dos monges e parada no tempo, onde se pressentia o cacarejar das galinhas à solta pela rua , o chiar dos rodízios de carros de bois e se falava do sino da igreja badalar para anunciar que fulano tal e sua esposa… tinham chegado de Lisboa… transcendências!


Postal de Alcobaça com uma data próxima à data da visita de Unamuno
1906

ALCOBAÇA


Cheguei de Lisboa a estação de Valado, já de noite, e de Valado a Alcobaça levou-me uma pequena carruagem desconjuntada. Afastei o frio e a solidão, imagi­nando o que seria aquele caminho envolto então em trevas: por onde vamos?
E foi um formoso amanhecer de fins de Novembro, num verdadeiro Verão de S. Martinho, quando sai para ver o histórico mosteiro de Alcobaça, outrora convento de bernardos.
O arrebol da aurora dourava as colinas, quando eu ia direito ao mosteiro, a fachada de cuja igreja atraía o meu anelo. Esta fachada, severa, mas pouco significativa, abre-se para uma grande praga estendida a toda a luz e todo o ar. Ao entrar no templo envolveu-me uma impressão de solene solidão e nudez. A nave, muito nobre, flanqueada pe­las suas duas filas de colunas nuas e brancas; tudo isto um pouco severo e robusto. Lá ao fundo, um retábulo deplorável, com uma grande bola azul estrelada e da qual irradiam raios dourados. As naves laterais semelham desfiladeiros. E encontrava-me só, e rodeado de majestade, como sob o manto da Historia. Vagueando, fui dar a sala dos reis. Os de Portugal figuram em estatuas, ao longo das paredes. No centro, um papa e um bispo coroam D. Afonso Henriques, o fundador da Monarquia, ajoelhado entre os dois. Há na sala um grande caldeirão, que o inevitável guarda-cicerone, que acudiu ao ouvir ressoar os meus passos na solidão, me disse ter sido tomado aos castelhanos na batalha de Aljubarrota. Debrucei-me sobre a sua borda; estava vazio.
Desta sala passei ao claustro de D. Dinis, hoje a restaurar. Formoso recinto, nobilíssimo e melancólico. A agua da fonte canta a solidão da Historia entre as pedras mudas de recordações, e um pássaro atravessa o pedago de céu límpido, de cair do Outono, a cantar quem sabe o quê. As pedras olham-se na triste verdura do recinto.
E depois passei para ver o outro claustro, mais vivo, mais íntimo, o chamado do Cardeal, onde hoje ha um quartel de artilharia. Todo o antigo convento de monges bernardos mostrou-mo um simples camponês fardado de soldado de artilharia. O pobre jovem somente via ali o quartel, sem saber nada de monges. «Aqui fazemos os exercícios, aqui é o picadeiro, aqui...», etc. Na porta do que foi antanho biblio­teca, dizia aquilo dos provérbios: viam sapientiae monstrabo; «mostrar-te-ei o cami­nho da sabedoria». E mostrou-ma um recruta português, mas estava vazia, e não era um caminho, mas uma sala. Queria mostrar-me, é claro!, as pecas, os canhões. (1)

Voltei a igreja, agora com o guarda. Mostrou-me o altar em que se representa a morte de S. Bernardo, uma cena um pouco teatral, que parece de um grande presépio de cartão, desses de Natal, mas não será o seu efeito. Um frade de pedra chora eternamente, levando o branco manto aos olhos, não sei se a morte do seu santo pai S. Bernardo ou a trágica historia de Inês de Castro. Porque defronte deste altar uma pobríssima grade de madeira fecha a capela onde descansam! por fim os restos da infortunada amante de D. Pedro I.
O guarda levou-me até aos túmulos de D. Pedro, de D. Inês e de seus filhos, e pedi-lhe que saísse, deixando-me só. Nunca na minha vida esquecerei esta visita. Naquela severíssima sala, entre a grave nobreza da branca pedra nua, a luz apagada e difusa de uma manhã de Outono, as brumas da lenda embuçaram o meu coração. Uma paz cheia de solidões parece deitar-se naquele eterno descansadeiro. Ali repousam para sempre os dois amantes, joguetes que foram do trágico fado. Como aves agoureiras, vinham-me a memoria os alados versos de Camões ao contemplar o túmulo da
«mísera e mesquinha Que, depois de ser morta, foi rainha.»
É porque o puro amor
«que os corações humanos tanto obriga»
quer, áspero e tirano, banhar as suas aras em sangue humano.
Descansam em dois túmulos de pedra Pedro, o duro, o cruel, o justiceiro, o louco talvez, e a linda Inês, e descansara de tal modo que, se se levantassem, ficariam face a face e poderiam outra vez beber o amor nos olhos um do outro.
Seis alados anjinhos guardam e sustém a estatua jacente de Inês, e outros seis a de D. Pedro; aos pés dela dorme um dos três cãezinhos que ali houve outrora, e aos pés dele um grande lebreiro, símbolo da fidelidade. O túmulo dele é sustido por leões; o dela, leões também, mas com cabeças de monges. Na pedra do sepulcro de Inês, a flor da paixão, a escrava do amor, cenas da Paixão de Cristo, do que perdoava a que muito pecou por ter amado muito; no lado da cabeça, a Crucificação, e no lado dos pés o Juízo Final, em cujo céu ha uma mulher. O sepulcro de D. Pedro mostra-nos o martírio de São Bartolomeu. Ele, D. Pedro, com uma cara plácida, com cabelos e barbas a moda assíria, sustém a sua dura espada sobre o peito.
E pesa ali um ar de tragédia.
Ali está o que resta daquele rei D. Pedro I de Portugal, um louco com interva­los lúcidos de justiça e economia, como dele disse Herculano; aquele homem para quem foi uma mania apaixonada a justiça e que era carrasco por suas próprias mãos. Ele, o adúltero, odiava com um ódio raro os adúlteros: seria o remorso? Ali descansa de suas justiças, das suas nemródicas caçadas ; ali descansa, sobretudo, dos seus amores. Ali descansa o tirano plebeu, a quem seu povo adorou.

«Quando voltava em batéis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a recebê-lo com danças e trebelhos. Desembarcava e ia á frente da turba, dançando ao som das longas (trombetas) como um rei David. Estas folias apaixonavam-no quase tanto como o seu cargo de juiz. Por elas chegava a fazer loucuras. Certas noites, no paço, a insónia perseguia-o: levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava acender tochas; e ei-lo pelas ruas, dançando e atroando tudo com os berros das longas. As gentes que dormiam, saíam com espanto as janelas, a ver o que era. Era o rei. Ainda bem! Ainda bem! Que prazer vê-lo assim tão ledo!» (Oliveira Martins, Historia de Portu­gal, Livro II, capítulo III.)

Não recordais a historia trágica de seus amores com Inês, que Camões, mais que qualquer outro poeta, eternizou? Ai por volta de 1340, foi a linda Inês de Cas­tro, galega, para Portugal, como dama da infanta Constança, a mulher de Pedro, o filho de Afonso IV. E foi a mulher fatal, como diria Camilo. O fado trágico fez com que se enamorassem; aquele amor ch'a null'amato amar perdona, como disse o poeta da Divina Comedia. Tiveram frutos dos trágicos amores; intrigas da corte e da plebe fizeram que o rei Afonso mandasse matar a nora, pois, viúvo de Constança, Pedro casou logo em segredo com Inés, que foi apunhalada em Coimbra:
«As filhas do Mondego a morte escura longo tempo chorando memoraram; e, por memoria eterna, em fonte pura as lágrimas choradas transformaram!; o nome Ihe puseram, que inda dura, dos amores de Inés, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, que lágrimas sao a agua e o nome amores.»
E quando mais tarde D. Pedro subiu ao trono, conta a lenda que mandou desen­terrar Inês e coroá-la rainha, e, tendo-se apoderado de seus matadores, torturou-os barbaramente, vendo do seu palácio, enquanto comia, em Santarém, como os queimavam. E isto podeis lê-lo no velho e encantador cronista Fernão Lopes, que no-lo conta tudo homéricamente, com uma simplicidade tão animada que é um encanto.
Ele conta-nos tudo menos a exumação e a coroação, que parece ser uma lenda tardia, mas muito bela. E no fundo, de uma altíssima verdade transcendente.
Essa pobre Inês, que reinou depois de morrer... E de morrer por ter amado com amor de fruto, com amor de vida! Que reino e que rainha!... Rainha, sim, rainha no mundo das trágicas lendas, consola da tragédia da vida; rainha com Isolda, a de Tristão; rainha com Francesca, a de Paolo; rainha com Isabel, a de Diego.
Naqueles mesmos dias em que visitei em Alcobaça o túmulo de Inês lia A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco; de Camilo, o que nos deu nos seus romances toda a alma trágica, fatídica, patética, de Portugal. «Acuso-me — diz Camilo nesse livro -de ter feito chorar com a minha fantasia muitas pessoas incapazes de verter uma lágrima balsâmica sobre uma chaga de miséria verdadeira.»

Sim, Camilo faz chorar: os seus livros parecem escritos com lágrimas de fogo, que escaldara. E toda a Historia de Portugal, não faz porventura chorar? Não é chorosa?
Num canto da capela de Inês e Pedro descansara os restos dos três filhos do trágico amor fatal, e os seus três sarcófagos de pedra, simples, toscos, são relicários plenos de recordações. Pobres jovens! Na mesma capela dorme o seu eterno sono D. Beatriz, a mulher de Afonso III, e D. Urraca, a de Afonso II. A que não está ali é Constança, a pobre Constança, a infeliz esposa de D. Pedro, a quem D. Inês serviu e a quem arrebatou o coração do seu Pedro. Ela, Inês? Não, que foi o Fado. Oiçamos o velho cronista Rui de Pina, que na sua crónica do rei D. Afonso IV nos diz com a sua homérica simplicidade que «o Infante D. Pedro filho primogénito herdeiro de El-Rei D. Afonso de Portugal foi casado com a Infanta D. Constança Manuel, como atrás hei declarado, e dela em vida de El-Rei D. Afonso seu pai houve dois filhos e uma filha, o Infante D. Luís, que foi o primeiro, e este em moço faleceu, ao baptismo, do qual D. Inês Pires de Castro foi comadre de El-Rei D. Pedro sendo Infante e da Infanta D. Constança, e isto se fez porquanto D. Inês andava em casa da dita Infanta por sua donzela, e parente, e sentia-se já que o Infante D. Pedro Ihe queria bem, e por se evitar entre eles outra afeição.»
Não adivinhais já tudo? Fizeram Inês madrinha do filho de Pedro, seu amante, e de Constança, sua amiga, para criar pela religião um incesto entre eles. Desta cir­cunstancia tirou formosíssimo partido Eugénio de Castro no seu belíssimo poema Constanza. E na Monarquía Lusitana (VII Parte, Livro X, Capítulo VI) diz-se que se fortaleceu a confiança dos amantes ao ver que as forçosas consequências do parto faziam que D. Constança estivesse presa na cama.
Desgraçada Constança, mas muito mais desgraçada Inês! Afinal, aquela reinou de certo modo no mundo e na vida; Inês, a do amor fatídico, não pode reinar senão depois de morta, e morta por mãos violentas. Aqui poderiam dizer-se as palavras com que termina o Freí Luís de Sousa, a clássica tragédia Portuguesa: «Deus aflige neste mundo aqueles que ama. A coroa de gloria não se da senão no céu.»
Com pesar despedi-me do pétreo caixão que encerra os despojos do que foi a beleza de Inês de Castro, a de trágica memoria. E ali, fica, entre as brancas pedras cistercienses do mosteiro levantado para comemorar a independência de Portugal. Contudo, o severo monumento, nu, solitário, silencioso, lembra, mais que a independência da pátria, a independência do amor. Portugal, que, como Inês, amou muito e amou tragicamente sob o jugo do Destino —, não reinará também depois de morrer? A desgraçada amante não é um símbolo prefigurativo, um augúrio, dessa terra linda, linda como Inês, vítima também de fatídicas paixões?
Com pena, com pena de solidão, deixei aquela capela de amor fatídico, e, atravessando o templo voltei a ver a luz do céu. Sorriam com um sorriso outonal as coli­nas, sorria Alcobaça, uma vila branca de casario, verde de campo, risonha, florida, aberta, campesina e nobre, industrial e histórica. O seu rio é um rio de fábricas, ladeado de muros e rumoroso, desses que movem máquinas.

Voltei ao hotel — o Hotel Alcobacense — a pensar em Inês. Sobre uma pequena mesa, na sala de jantar, encontrei a London Opinión e a Revue des Voyages... Para que conste...
Percorri, agora de dia e numa carruagem colectiva, o caminho que na noite ante­rior percorri as escuras numa carruagem pequena e desconjuntada. Um caminho deli­cioso de campo, mais aberto que os do Minho e mais viçoso.
E outra vez no comboio, nesse odioso comboio, num desses insuportáveis vagões de caminho-de-ferro. Para me recompor ia a pensar no que seriam as viagens por essa encantadora terra portuguesa, toda carinho, naquelas diligencias de campainhas sempre a retinir de que nos fala António Nobre numa das suas mais íntimas poesias: «E, dia e noite, aurora a aurora, / Por essa doida terra fora, / Cheia de Cor, de Luz, de Som». E passavam moinhos de vento, eiras, solares, antepassados, rios, luar, paisagem etérea e doce, ao qual Nobre confessava dever u:-i» o que era, depois do ventre que o trouxe.
«E enquanto a velha mala-posta, / A custo vai subindo a encosta / Em mira ao lar dos meus Avós, / Os aldeões, de longe, alerta, / Olham pasmados, boca aberta... / A gente segue e deixa-os sós. // Que pena ver os que ficam! / Pobres, humildes, não implicam, / Tirara com respeito o chapéu: / Outros passando a nosso lado / Diziam: 'Deus seja louvado!' / 'Louvado seja! dizia eu. // E, meiga tombava a tardinha...» Uma paragem súbita, o grito de um rapaz a anunciar uma estação cortavam--me o sonho em que António Nobre me levava. E o comboio voltava a partir e eu voltava a sonhar.
A subida de Novelas, o gordo e rubro Cábemelas, o repouso na estalagem de toalhas brancas, marmeladas, o cuco da sala a dar as horas. E depois «Caía a noite. Eu ia fora, / Vendo uma estrela que lá mora, No firmamento português: / E ela traga-me o meu fado/ 'Serás Poeta e desbragado!' / Assim se disse, assim se fez.» E tudo o mais que Nobre nos conta até que chega a casa.
E em casa esperava-o a sua avó, que, abraçando-o, exclamava: «Qu'é dos teus olhos, dos teus braços, / Valha-me Deus! como ele vem!», e outras mil doçuras. Ele entrava no seu quarto, «Tudo tão bom, tudo tão farto! / Que leito aquele! e a agua, Jesus! E os lençóis! rico cheiro a linho! / — Vá, dorme, que vens cansadinho. / Não adormeças com a luz!» Mas ele deitava-se, mudo e triste; a avó acrescentava: «Reza também o Tergo, ouviste?», os versos a bailar dentro dele, e tirava as escondidas um livro que levava oculto no seio, e lia, lia Garrett... 4I
Também eu, ao chegar a Figueira da Foz, e ao cair sobre uma daquelas duras camas portuguesas, mas não na casa de meus avós, sim num hotel, me pus a ler, mas não Garret, sim Camilo. E assim como Nobre adormecia com a ideia daquela tia Doroteia de que fala Júlio Diniz, adormeci com a ideia daquele pobre Carlos Pereira, um dos pobres escravos do destino, de que nos fala Camilo. E com a lembrança da fatídica Inês de Castro, cujos despojos deixei a dormir em Alcobaça.
Salamanca, Dezembro de 1908.

quarta-feira, setembro 01, 2010

FÉLIX LICHNOWSKY: descrição do Mosteiro de Alcobaça,1842


A viagem nos séculos XVIII e XIX esteve muito em voga entre as elites aristocráticas da Europa e pode dizer-se que esta se associava à formação do gentleman, que não era mais do que o adulto delicado, elegante e cosmopolita. Este personagem foi muito popularizado no séc. XVIII, na Inglaterra vitoriana, como a literatura nos revela. No caso dos jovens aristocratas, as viagens, alicerçava-os no contacto com o mundo real e eram um complemento da educação para além da vida académica e livresca, e assinalava a entrada do jovem no mundo adulto, como se a viagem fosse o rito de iniciação entre aristocratas.
Mas, as viagens não tinham só fim educativo e complementar para jovens distintos; muitas destas viagens eram feitas com fins comerciais e militares e foram precisamente os aspectos económicos que trouxeram a Portugal o príncipe Felix Lichnowsky. As experiencias militares teve-as na vizinha Espanha, nas guerras Carlistas. Na sua biografia consta ainda que se dedicou à política e foi um excelente parlamentário, exercendo em vários países europeus. Na Prússia, onde nasceu e mais tarde na Alemanha, desenvolveu actividades ligadas à economia e à política externa (com bastante habilidade) de forma muito experimentada.
Terão sido estas razões que em 1842 levaram D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha-Kohary, seu conterrâneo e marido da rainha D. Maria II, a convidá-lo a vir a Portugal para analisar a situação económica e politica portuguesa e assessorá-lo. O país estava mergulhado numa depressão derivada do enorme endividamento de Portugal à Inglaterra sua aliada de sempre.
No seu parecer, o príncipe Lichnowsky fez recomendações para que Portugal diversificasse o seu comércio com outros países para não ficar cativo comercialmente de Inglaterra, que no seu parecer derivava do Tratado de Methuen entre os dois países. Chocou-o também a miséria em que vivia o povo português e o atraso flagrante de todo o país, onde só algumas zonas do litoral tinham capacidade para exportar e explorar parte dos seus parcos recursos. A análise de Lichnowsky é um mosaico interessante do país numa época e revela aspectos ainda hoje visíveis, como as assimetrias entre litoral e interior e as comunicações. Estas impressões ficaram expressas no livro “Portugal: Memórias de 1842”. Que foi publicado um ano depois da visita que nos fez entre 24 de Junho e Agosto de 1842. É desse livro que extraio uma passagem dedicada a Alcobaça, uma povoação onde se vinha apenas para ver o mosteiro e partir logo de seguida tal como ainda hoje se faz. Ficar era, ao que parece, um suplício e os atractivos, nenhuns. Apesar desta ideia do “ver, olhar, andar e nada gastar” estar presente em quase todos os escritos dos estrangeiros e nacionais que visitaram Alcobaça e se mantém no turismo da actualidade, o facto nunca incomodou ninguém para alterar este princípio em beneficio da povoação do concelho e pessoas. E continua a não incomodar, porque parece suficiente ter esplanadas, cadeiras, areais e insignificâncias similares, que dão para ver, comodamente sentados, os turistas passarem ao longe. É por efeitos destes que os encantadores de serpentes se vêm sucedendo de forma dinástica, em benefício pessoal e dos compagnons de route, mas em prejuízo da povoação e do concelho, impunemente.




Texto do príncipe Felix Lichnowsky sobre o Mosteiro de Alcobaça

Nessa tarde chegámos a Alcobaça, que fica a três léguas da Batalha. Alcobaça e Batalha são os nomes que usualmente são pronunciados pelos portugueses e pelos estrangeiros quando se trata de urna digressão no interior do país, ou quando se vem a falar acerca das suas coisas notáveis; contudo, é pena que estes dois pontos capitais da grande história portuguesa se achem tão perto um do outro; porquanto necessariamente um deles deve enfraquecer a impressão do outro. E o que acontece principalmente quando se vem da Batalha. Apesar de grandes recordações históricas e poé­ticas, Alcobaça perde muito na comparação que inevitavelmente tem de fazer-se, quando ainda se conserva profun­damente gravada a lembrança da régia Batalha. O túmulo da formosa D. Inés e de seu esposo, D. Pedro I, que o amor tornou cruel, é naturalmente a primeira coisa em que se pensa em Alcobaça, onde as sepulturas, como geralmente em todo o Portugal, são objectos de grande consideração, grande principalmente em relação ao quanto é apoucado o presente; todavia, o exterior de Alcobaça não corresponde de modo algum a sua alta antiguidade, a sua celebridade e as grandes recordações que se ligam ao seu nome.

Esta abadia cisterciense foi erigida por D. Afonso Henriques em memoria da tomada de Santarém, como o indica na denominada sala dos reis a noticia da fundação, que se acha traçada em azulejos, e a qual contém um anátema contra aquele de seus sucessores que tratasse de abolir o mosteiro. Acha-se também ali o célebre documento que tem dado que pensar a muitos historiadores e pelo qual D. Afonso Henriques declara o seu reino tributário ao Convento de Clairvaux, segundo se pretende, em paga da intercessão de São Bernardo em Roma. Em contraposição a estes significativos monumentos dos primeiros períodos do reino de Portugal, a facha­da do mosteiro corresponde ao pensamento de urna edificado do último século. A parte central é formada por urna igreja flanqueada de duas torres e cujo frontão sustenta urna grande imagem de Nossa Senhora; de uma e outra parte da igreja prolongam-se dois corpos laterais de grandes dimensões, de 18 janelas de comprimento e de 1 andar de altura, que con­tém os aposentos do mosteiro, e semelham de algum modo a quartéis de tropa. Tudo se acha em estado de grande deterioração, principalmente os alojamentos do mosteiro; a igreja, para onde se entra subindo alguns degraus, é alta e vasta, de um estilo normando -gótico puro e simples, e construída com a mesma pedra branca empregada na Batalha. Um grande espelho (rosace) acha-se sobre a porta principal e, semelhante a um caleidoscópio, é cheio de vidros de varias cores. Na igre­ja não há obra alguma de escultura, a excepção de um órgão de madeira; e, como em todas as igrejas de Portugal, não se encontra ai também nenhuma estátua, nem quadro. Cinco capelas colaterais no cruzeiro, com pesadas douradoras em madeira, um altar-mor branco e dourado com figuras de pau, que se nao podem chamar estatuas, e tendo a roda 10 grandes colunas jónicas, formam todo o ornato desta igreja, aliás nobre, formosa e de mérito arquitectónico. Um sol, ou glória dourada e colossal, que por trás do altar-mor se prolonga em todas as direcções, não se pode dizer que tenha notável beleza, porém produz grande impressão, principalmente quando, ao descer o Sol ao horizonte, essa grande massa brilhante se ilumina e cintila. Em geral nesta igreja tudo parece dis­posto com o fim de produzir efeito; deste modo, por detrás do altar-mor, e em semicírculo, acham-se, em 7 nichos, ou capelas, outros tantos altares, que se conservam obscuros e que, através de uma grade de ferro, se observara como sepul­tados numa profundidade; é isto de um efeito singular, e parece de algum modo urma ilusão óptica. Ali repousa tam­bém o primeiro abade de Alcobaça, irmão do fundador.
Visitamos depois algumas capelas, uma das quais, for­mando notável contraste com a igreja, é coberta por toda a parte com as mais ricas esculturas e árvores com folhas e frutos; outra, muito antiga, é inteiramente dourada e cheia com alguns centenares de bustos de madeira pintados, que são efígies de santos, que cobrem todas as paredes como se fora um gabinete de historia natural e trazem sobre o peito bocetas de vidro, onde se acham relíquias; algumas destas figu­ras, que se achavam mais no interior, foram dali arrancadas pelos franceses, que esperavam poder nelas encontrar tesouros; porém, como só achassem pequenos fragmentos de ossos, deixaram intactas todas as outras. Numa grande sacristia meio queimada, achei notável unicamente um tecto muito belo, azul e branco com rosas douradas.
Ultimamente, para concluir as nossas investigações, viemos (3) ao carneiro, ou antessala, onde repousam D. Inês e D. Pedro. Em frente um do outro, acham-se dois sarcófagos de mármore branco de 16 palmos de comprimento, 7 de alto e 5 de lar­gura; são ambos cobertos com os mais delicados arabescos e altos-relevos; as figuras dos dois amantes, de grandeza mais que natural, estão colocadas, por ordem expressa de D. Pedro, com os pés de urna contra os da outra, de maneira que no dia de Juízo, se ressuscitarem na mesma posição, vêem-se imediatamente um ao outro, logo depois de terem visto o Céu. D. Inês tem um vestido franzido, cujas mangas curtas deixam ver dois braços redondos que se cruzara sobre o peito; as mãos são compridas, estreitas, mas pequenas para a grandeza da figura; uma delas tem calçada uma luva sem dedos; o corpo do vestido é justo e preso por meio de ala­mares e botões antigos, a semelhança dos da Hungria; com uma das mãos pega num fio de pérolas que lhe cinge o pescoço, e na outra tem uma luva. Como a descortesia dos fran­ceses não poupou nem o nariz daquela formosa dama, é impossível formar urna ideia completa das suas feições, as quais o artista (que era contemporâneo) manifestamente quis representar belas; o rosto é algum tanto cheio, mas não deixa de ter graça, as orelhas estão quase inteiramente cobertas por um toucado muito justo; uma pequena boca e uma covazinha na barba dão a essa fisionomia de pedra um não sei quê de chistoso. Quando se reflecte que el-rei D. Pedro, que seguramente era entendedor na matéria, mandou cinzelar à sua vista este mausoléu, deve presumir-se que pelo menos haverá alguma semelhança com o original. Tem na cabeça urna coroa real, e superiormente estende-se um pequeno baldaquino; seis pequenos anjos estão dispostos em torno de D. Inês, protegerá a sua cabeça, fazem mover turíbulos e pegam na cauda do seu vestido. O túmulo é sustentado por seis figuras em forma de esfinges, das quais, porém, somente duas são de mulher; as outras apresentam rostos de homem com barba ou sem ela. Ao longo do friso alternam-se as armas reais portuguesas com os seis dinheiros da casa dos Castros. O sarcófago de D. Pedro é sustentado por seis leões; o seu rosto severo e barbado (ao qual felizmente deixaram intacto o nariz, alias bem feito) mostra as mesmas feições nobres e ternas que Ihe dão todos os retratos; é coberto por um longo trajo franzido, e com ambas as mãos pega na espa­da; os seus pés está deitado um cão da raça que em Inglaterra tem o nome do rei Carlos II; infelizmente falta urna parte da cabeça daquele formoso animal. As quatro faces de ambos os túmulos são cobertas de pequenos altos-relevos que repre­sentara o Juízo Final, o Purgatório, a Ressurreição e os padecimentos de muitos mártires; a execução destas obras indica de algum modo a infância da arte; geralmente poderão notar--se muitos erros artísticos, ou contra a verdadeira beleza, nestes dois monumentos; mas quem se lembrará de fazer tais observações ai, onde campeiam tão romântica poesia e, ao mesmo tempo, tanta verdade histórica?
Em alguns cantos do carneiro e da igreja acham-se também as sepulturas dos três filhos de D. Inês e de D. Urraca, esposa de D. Afonso II (em 1220), e muitos outros de mui pouca importância e que contêm infantes e infantas falecidos nos séculos XIII e XIV.35 Contudo, os dois mausoléus, célebres no mundo inteiro, tinham de tal sorte absorvido todo o interesse da nossa observação que aos outros somente pudemos conceder ligeira atenção. Uma coisa porém deve surpreender depois de uma tal viagem ao reino dos mortos, e vem a ser que em todo o país haja tantas sepulturas de reis espalhadas por toda a parte. A impressão torna-se absoluta­mente maior e mais solene, e é historicamente mais justo, e mais verdadeiro, que esses príncipes repousem onde quiseram repousar, onde lidaram ou triunfaram, ou onde fizeram (5) fundações : pára-se numa pequena povoação de urna montanha, ou numa solitária abadia, a fim de grave, conscienciosa e solenemente visitar a lousa de um rei, ou de um herói, que ai faleceu; enquanto os jazigos gerais, como São Dinis, a Capela de São Jorge e a dos Capuchinhos deixam frio o observador e chegam a enfadar depois de urna longa demora. Coimbra, Guimarães, Batalha, Alcobaça, e outros lugares que infelizmente não pudemos ver, conservarão provavelmente os seus túmulos reais, porquanto nenhum interesse momentâneo exigirá imperiosamente que o espírito de centralização se faça também extensivo aos mortos.
A hospedaria em Alcobaça era tão má que ainda durante a noite tivemos de partir, e, depois de uma marcha de três horas, chegámos à povoação, célebre pelos seus banhos, cha­mada as Caldas da Rainha, que tem a reputação de ser uma terra interessante, e onde obtivemos, em recompensa do nosso trabalho, a vantagem de mais algumas comodidades. Não era porém então a estação própria, e por isso o melhor que pudemos fazer foi montar de novo a cavalo, logo depois de algumas horas de descanso. Caminhámos com vento, chuva e um tempo fresco, por urna estrada sofrivelmente calçada e através de um território agreste, coberto de pinheiros e mato, até que finalmente chegámos a Vila Nova da Rainha, estação superior dos vapores do Tejo, onde o Sertorius nos recebeu e nos desembarcou em Lisboa, ainda antes de findar a tarde.