segunda-feira, agosto 23, 2010

O Conde Raczynski e uma descrição do mosteiro

Conde de Raczynski
por Gemälde von Carl Wilhelm Wach

À excepção de alguns ambientes diplomáticos e dos meios académicos, poucos são aqueles que ouviram falar do conde Raczynski. Este ilustre aristocrata polaco desembarcava em Lisboa no ano de 1843, numa missão diplomática, como ministro do rei da Prússia em Portugal, onde residiu até 1846. Além de diplomata era um insigne académico, amante da cultura e da arte. Durante o período que esteve em Portugal, estudou e pesquisou a arte portuguesa antiga, elaborando o mais importante corpo da história artística alguma vez feito em Portugal nessa época. Ao ser polaco, era imune às apreciações localistas. Reviu com imparcialidade certas autorias fantasiosas e aplicou métodos inovadores num país com escasso desenvolvimento artístico e uma cultura estética caracterizada por uma instrução assaz reduzida. Profundamente ilustrado e estudioso, as suas análises eram experientes e com independência crítica, aliando rigor de método onde dominava ainda a apreciação histórica e a arte coeva. O seu rigor metodológico levou-o a percorrer o país, visitando monumentos, igrejas, bibliotecas e as galerias particulares mais famosas, para decantar uma visão abrangente da arte portuguesa como foi a sua. Neste trabalho conviveu com importantes bibliotecários, arquivistas, e eruditos de nome sobressaliente como: Alexandre Herculano, Vasco Pinto de Balsemão, o visconde de Juromenha, Francisco de Sousa Loureiro, Manuel-Francisco de Barros, e Lucas José dos Santos Pereira ou Ferdinand Denis, conservador da biblioteca Sainte-Geneviève,

Pode afirmar-se com propriedade que os dois estudos que elaborou: Les arts au Portugal (1846) e Dictionnaire Historico-artistique du Portugal (1947), em termos históricos, surgem como rotura metodológica e critica ao que até então se fazia, por cá, em que o estudo e a sistematização da arte e do património como campos próprios eram, por assim dizer, quase inexistentes senão nulos. Com o seu trabalho tentou dar acesso a uma documentação inédita sobre a arte portuguesa do século XVI para diante. A ele se deve o primeiro inventário geral dos bens culturais portugueses, com a elaboração de um relatório das obras de arte e a publicação de documentos inéditos, como os diálogos romanos de Francisco da Hollanda, traduzidos por Auguste Roquemont. Tentou ainda restabelecer a verdade histórica sobre o mítico pintor português, Grão Vasco, aferindo as fontes e comparando sistematicamente as obras. Este trabalho publicado em francês em 1846 e prolongado no Dictionnaire historico-artistique du Portugal em 1847, foi inicialmente considerado inferior e feito às “três pancadas”. No entanto, hoje é apreciado como fonte essencial para a história da arte portuguesa

Como inovador, as suas estimações críticas esbarraram com um modus vivendi, onde não havia experiência nem metodologia, e foi por isso alvo de uma reacção violenta, como é costume acontecer contra quem tenta inovar. Este facto tê-lo-á levado a suspender um terceiro volume sobre arte em Portugal.
Escusado será dizer que no campo da arte em si (da história, da critica, da sociologia, da filosofia sobre arte, …,) continuamos a não ser especialmente dotados, senão a Unesco não recomendaria ao Estado Português, que investisse mais no campo artístico em todos os níveis de ensino e posteriormente as Artes tal como a Medicina, serem declaradas prioritárias pelo governo da República.

Quanto ao conde Raczynski, é no contexto das viagens por Portugal, feitas para o estudo da arte portuguesa, que surge uma sua pequena apreciação sobre o mosteiro de Alcobaça, no seu livro “Les Arts au Portugal” e por simpatia com pequenos juízos da povoação, gentes e os monges.

O texto de Raczynski, deve ser entendido como expressão própria de uma época e numa visão imparcial, mas com um olhar artistico e intelectualmente bem formado.

DESCRIÇÃO DO MOSTEIRO POR RACZYNSKI

Aguarela de James Holland


"No dia 25 saí muito cedo das Caldas e necessitei cinco horas para chegar a Alcobaça, que está a 4 léguas. O dia era lindo e fazia muito tempo que não dava um passeio tão grande a cavalo e com tanto calor. Apesar do cansaço fui directamente até à igreja e coloquei-me numa janela para desenhar o túmulo de Inês de Castro.
Alcobaça está bastante bem construída e os seus habitantes não parecem miseráveis. Os preços dos produtos de primeira necessidade são mais altos que na nossa região: um par de bois custa aproximadamente 15 moedas (450 francos ou 120 thaleres de Prússia).
Um advogado fez-me alguns relatos sobre os monges que não os deixa em bom lugar; eram vistos como os tiranos no país. É verdade que as propriedades e os privilégios de que desfrutavam eram enormes e que os seus fazendeiros, rendeiros ou serventes só ganhariam com uma mudança que lhes outorgava a livre posse do que lhes custava antes tanto trabalho, sacrifícios e muita sujeição. Até que ponto os monges abusaram dos seus direitos? Até que ponto esses direitos tinham sido justamente adquiridos? São perguntas que requerem um exame em profundidade. O que é certo é que todas as pessoas imparciais, salvo um aldeão bêbado, estavam de acordo em que a supressão desta comunidade beneficiava o país. O que também é certo é que os monges eram grandes adeptos de D. Miguel e que, se não me engano, apetrecharam, pela sua própria conta, um batalhão de voluntários para a defesa da sua causa. Por sua parte, D. Miguel demonstrou muita simpatia por eles, foi visitá-los e passou vários dias no convento. Não se pode negar que apoiando-o, os monges mostraram muita subtileza e discernimento; os assuntos de D. Miguel apenas terminados foram expulsos da sua antiga habitação. A biblioteca era valiosa e muito rica em manuscritos. Todos esses tesouros da ciência, todo esse material da História foram levados para Lisboa. Não me atrevo a afirmar que estejam guardados, classificados e conservados com cuidado. Conta-se que um número importante foi roubado mas não sei muito a esse respeito, porque se a imoralidade dos que se envolvem em revoluções aumenta pelo frequente regresso das comoções, sua inclinação para a calúnia aumenta certamente ainda mais. Devemos acrescentar que as propriedades dos monges ocupavam uma extensão de várias “léguas” quadradas, quase desde Leiria às Caldas e que os seus rendimentos estavam calculados em várias centenas de milhais de cruzados. Tendo as persecuções que sofreram começado antes do domínio de D. Miguel, os monges exerceram duras represálias contra os que se mostraram sôfregos em melhorar sua posição a expensas do convento.
Pode-se dizer que a ala da igreja de Alcobaça é magnífica; embora não tenha ornamentações, parece maior que a da Batalha. Os túmulos que se encontram dentro de uma das capelas constituem a parte mais rica e mais interessante. Destacaremos na primeira linha os de Inês de Castro e D. Pedro I, que morreu em 1367 e que foi chamado o Justiceiro por causa do seu inexorável rigor com os malfeitores. Prova disso foi a maneira cruel em que mandou matar os executores da sentencia pronunciada pelo pai contra Inês de Castro. O coração de um deles foi arrancado pelas costas e o do outro pelo peito, enquanto D. Pedro assistia a execução. Estes dois sepulcros estão bem conservados, salvo uma parte onde os soldados do exército de invasão fizeram buracos esperando encontrar algum tesouro. Estas marcas do vandalismo e da cobiça inseparáveis das guerras civis ou estrangeiras foram cobertas de gesso. Também devemos acrescentar que em Coimbra os que combatiam pela liberdade trataram com menos respeito ainda as suas próprias relíquias históricas.
As tumbas estão ricamente ornamentadas com esculturas representando acontecimentos da vida de D. Pedro e Inês. Na mesma capela estão também outros sarcófagos: o de Beatriz, mulher de Alfonso II, (1220), o dos filhos de Inês e mais alguns. O claustro parece bastante deteriorado, embora ainda não esteja completamente em ruína. A biblioteca tem uma fama que não é merecida; o espaço que ocupa é amplo, mas é tão pouco elevada que as suas proporções não deixam nenhuma impressão de grandeza. Nada se fez para a conservação deste monumento. Não é assim para a Batalha onde foram dedicados cada ano 2 contos (3.200 thaleres ou 11.900 francos) para reparações, que deram resultados bastantes mais satisfatórios do que se podia pensar com tão pouco dinheiro. A sala que contém as estátuas de todos os reis de Portugal não me satisfaz; têm todas um ar moderno, o estilo e o carácter estão faltos de veracidade cronológica e todos estes reis parecem ter encontrado os trajes no guarda-roupa do Theâtre-Français no tempo de Luís XIV (ver N.T.)
Um grande painel lateral, que segundo o sacristão foi pintado por Joseph de Obidos (1684) pareceu-me bastante medíocre. Salvo este painel, não vi nada em Alcobaça que se parecesse a um quadro.
O aspecto exterior da igreja é bastante grandioso, embora a fachada acrescentada no século XVII seja um “monstro” de anacronismo arquitectónico, um conjunto esquisito de todos os estilos, desde o gótico até ao rococó. In "Les Arts En Portugal, Lettres adressees a la societé artistique et scientifique de Berlin". pp. 453 a 456.

N.T. Théâtre- Français (ou Comédie française) é um teatro nacional subsidiado pelo Estado. Foi fundado em 1681