terça-feira, junho 02, 2009

OS COUTOS DE ALCOBAÇA



A palavra (couto) e alguns aspectos historico-sociológicos dos coutos

A palavra couto vem nos dicionários com as seguintes acepções: terra de defesa, terra privilegiada; terra que não pagava impostos por pertencer a um nobre ou a uma ordem religiosa, refúgio e abrigo. Em relação a Alcobaça são as três últimas acepções que se enquadram mais no âmbito do termo “Coutos de Alcobaça”. O couto era então uma porção de terra demarcada com certas prerrogativas jurídicas diferentes das demais e quem nela se acoutava ou optava para viver/acoitar, ficava sobre a jurisdição da entidade possuidora daquele espaço. Espreitemos de forma rápida os conceitos e acoitar segundo esta jurisdição.

Acoitar: é um termo do princípio da nacionalidade e está unido ao povoamento. Na Idade Média o repovoamento do território português foi feito, em parte, à custa de criminosos/homiziados. Estas pessoas adquiriam liberdade e deixavam de ser perseguidas pela justiça se fossem viver para os territórios conquistados, dos quais alguns eram coutos. Esta medida tinha o efeito daquilo a que hoje podemos designar de reinserção social. Os criminosos tinham assim a oportunidade de voltar a fazer as suas vidas sem serem perseguidos pela justiça e tinham ainda porções de terra doadas como aliciante suplementar para se fixarem. No entanto não devemos esquecer que essas zonas designadas por couto eram por vezes zonas fronteiriças e, em caso de invasão, eram estes colonos o primeiro escudo a travar as investidas do inimigo. A instabilidade pelas algaradas constantes de muçulmanos e de cristãos, incitaram os reis a instituir estas zonas de liberdade aparente. Para os homiziados a liberdade tinha este preço.

Visto de outro modo, estas pessoas acabavam por ser utilizadas como batentes contra os invasores e, em nome de uma falsa liberdade, hipotecavam a sua vida transformando-a em simples carne para canhão de forma politicamente correcta para o poder de então. Para o poder esta reinserção preenchia igualmente duas funções, o povoamento e a defesa do território. O aparente aspecto de liberdade era a subtileza destes duas funções.

Em Alcobaça as crónicas são claras: no principio, o mosteiro foi arrasado e as pessoas passadas à espada. No entanto, por questões ideológicas compreensíveis, os cronistas só se referem ao massacre dos, à época, pouco monges.

Estes subterfúgios políticos que consistiam em perdoar os criminosos coutando-os nos lugares fronteiriços, devia tranquilizar o rei, a nobreza e o próprio clero. Deste modo sabiam onde os tais criminosos potenciais se encontravam, além de os manter afastados dos centros de poder e do “bom viver”. Estes aspectos de uma antiga vivência local que a história tende a omitir, podem ser um dos indícios a partir dos quais, sociologicamente, se podem entender a falta de desenvolvimento económico, social, industrioso, reivindicativo, além da ostentação que caracteriza muitas das regiões de Portugal que foram coutos no passado, tal como foi a região de Alcobaça. Os lugares têm fantasmas culturais e, na região de Alcobaça, parece que a força deles ainda continua a ser enorme.

Acoitar: Se a norma que referimos pode ser exemplo até ao séc. XIV, uma outra surge já com a consolidação nacional e os termos couto ou acoitar-se relacionam-se agora também com os espaços religiosos, igrejas, mosteiros, ermidas e seus espaços envolventes. Nestes lugares os homiziados fugidos à lei podiam encontrar protecção legal contra a justiça secular, como bem prescrevem as constituições sinodais. A justiça secular não podia prender nenhuma daquelas pessoas acoitadas naqueles lugares, salvo crimes de sangue. Ao acoitar os homiziados, os templos e espaços envolventes tornavam-se lugares muito mal frequentados e de gente “rasteira” e de “baixa-mão” . Aí vivia, anos atrás de anos todo o tipo de marginais construindo pequenos “bairros” que iam crescendo com o passar do tempo. Alcobaça não foi excepção: a primeira “urbanização”, feita no lugar depois da instalação dos monges, junto ao mosteiro, foi obra e engenho de foragidos.

Fora do muro (...) não havia nem casas seculares ainda no tempo de D. João I (...) variou-se esta forma antiga e foi-se introduzindo a povoação moderna por esta razão ou motivo: como a clausura era, dilatada e os monges caritativos os criminosos de todo o reino vinham meter-se dentro da dita clausura para serem seguros de Justiça; e como não podia ser, que vivessem, nem dormissem dentro das oficinas regulares, foi consequência necessária os tais criminosos fizessem suas casinhas onde se recolhiam”.

Com o passar dos anos, outros tipos de pessoas também fizeram as suas casas em redor do mosteiro e dentro da cerca. Isto representava uma certa “profanação” daquele espaço e motivou o protesto de um abade junto do rei D. Manuel, porque a perturbação e inquietação dos religiosos era muita. No entanto, aquela povoação sempre fora coutto para (...) homisiados de muitos casos, que a ela acolhião e porque ali com tamanho crescimento mais do que sohia se vinhão ahí mais pessoas viver e acolher por respeito do ser coutto do que cumpria para a honestidade e socego da dita, e além desto os moradores do dito lugar e couto recebião muita fadiga, e opressão dos que aly se acolhiam e lhe destruyão seus bens, e fazendas do dito mosteiro”.

Pela descrição, o panorama devia de ser de verdadeiro temor e em certos momentos como dos bairros de Portugal que os noticiários nos mostram. Estes factos que se passaram no séc. XVI motivaram o abade geral de então Frei Jorge de Melo a fazer um requerimento ao rei D. Manuel, protestando pela situação, para que esta comunidade fosse viver para um novo lugar que se chamaria Vila de S. Bernardo. O lugar esteve para ser na Vestiaria, uma povoação cheia de memórias também interessantes que a seu tempo alguma história comentarei. Pensamos que a "urbanização" dos homiziados nunca se mudou de Alcobaça, daquela zona privilegiada em frente do mosteiro...presumo.


Em 1 de Setembro de 1583, D. João III mandou publicar um alvará que determinava o seguinte:

Le. I. Da mudança do couto de Alcobaça para Alfeizerão.

Mandou el rei Dõ João.III que sancta gloria aja, aa petição do Cardeal Infante Dõ Affonso seu irmão, que o couto de alcobaça se mudasse para a villa de Alfeizirão, que he do dito moesteiro, e valesse a todolos maleficios tirando estes: Heresia, traição, aleive, sodomia, morte de proposito. Per hu alvará de. II de Septembro de. 1538. Fol.143. do livro.2
Duarte Nunes de Leão. Leis Extravagantes e repertório das ordenações. Em Lisboa per António Gonçalvez. Anno de M. D. LXIX. Pág. 178 (verso).