domingo, agosto 15, 2010

"O BRAZILEIRO" de EÇA DE QUEIROZ


A publicação da carta de lei que criou o reino unido de Portugal, Brasil e Algarve, no inicio do s. XIX estabelecerá em pé de igualdade o Brasil com Portugal, levando à emigração de muitos portugueses para aquela parte, então, de Portugal. O facto em vez de aproximar acentuou a fractura entre os genuínos “ filhos da terra” brasileira e os imigrantes portugueses. Originou até importantes revoltas que a literatura tem explorado.
O imaginário português foi povoado durante o século XIX e princípios do século XX pelo Brasil, como sinonimo de emigração e enriquecimento fácil. Aventureiros, comerciantes, despojados, eram atraídos por esse imaginário, que sendo real para uns não foi para outros. Muitos partiram voltando desafogados e empreendedores. Há casos conhecidos em Alcobaça e alguma arquitectura de finais do XIX e princípios do século XX, de carácter colonialista, a eles se deve. (Uma realidade local ainda por contar).

Simultaneamente esse imaginário transformou-se também em anedotário nacional, como se transformaram nos anos 60 e 70, do sec. XX, os “TURISTAS DE ALCOCHETE” e os AVECs, (portugueses imigrados em França). A crónica que segue, bastante divertida por acaso, é a visão de uma elite ilustrada sobre os Portugueses que imigravam e voltavam desse imenso país que é Brasil. Um texto crítico e divertido de Eça de Queiroz, que é ao mesmo tempo um notável momento de analise psicológica lusa, ainda muito presente entre nós.
O texto está na escrita original do séc. XIX.



O Brazileiro



Fevereiro 1872.



"Ha longos annos o Brazileiro (nao o brazileiro brazilico, nascido no Brazil — mas o portuguez que emigrou para o Brazil e que voltou rico do Brazil) é entre nós o typo de caricatura mais francamente popular. Cada nação possue assim um typo criado para o riso publico. As comedias, os romances, os desenhos, as cançonetas espalham-n'o, popularizam-n'o, desenvolvem-n'o, aperfeiçoam-n'o, e elle torna-se o grutesco classico — que chega a ser motivo d'ornato indus­trial, cinzelado em castiçaes, aguardado em caixas de phosphoros, torneado em castões de bengala. A França tem o inglez de côco diminuto na nuca, de larga e aguda suissa em fórma de costelleta alourada, dentuça taluda, collarinho alto como um muro de quintal, rabona de xadrezinho, pé largo como uma esplanada, e ar lorpa: últimamente tem a mais o prussiano, d'immenso bigode na focinheira, cabello em bandos, capacete em bico, um sabré prodigiosamente insolente e um relogio de sala roubado debaixo do braço!
Nos temos o Brazileiro: grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, collete e grilhão d'ouro, chapéo sobre a nuca, guarda-sol verde, a vozinha adocicada, ôlho desconfiado, e um vicio secreto. É o brazileiro: elle é o pai achinelado e ciumento dos romances román­ticos : o gordalhufo amoroso das comedias salgadas: o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos: o maridão de tamancos, sempre trahido, de toda a boa anécdota.
Nenhuma qualidade forte ou fina se suppõe no brazileiro : nao se Ihe imagina intelligencia, como não se imaginam negros com cabellos louros; não se Ihe concede coragem, e elle é, na tradição popular, como aquellas aboboras de Agosto que soffreram todas as soalheiras da eirá: nao se lhe admitte distincçáo, e elle permanece, na persuasão publica, o eterno tosco da rúa do Ouvidor. O povo suppõe-n'o o author de todos os ditos célebremente sandeus, o héroe de todas as historias umversalmente risiveis, o senhor de todos os predios grutescamente sarapintados, o frequentador de todos os hoteis sujamente lúgubres, o namorado de todas as mulheres gordalhufamente ridiculas.
Tudo o que se respeita no homem é escarnecido aquí no brazileiro. O trabalho, tão santamente justo, lembra n'elle, com riso, a venda da mandioca n'uma baiuca de Pernambuco; o dinheiro, tão humildemente servido, recorda n'elle, com gargalhadas, os botões de brilhantes nos colletes de panno amarello; a pobreza, tão justamente respeitada, n'elle é quasi cómica e faz lembrar os tamancos com que embarcou a bordo do patacho Constancia, e os fardos de café que carregou para as bandas de Tijuca; o amor, táo teimosamente idealizado, n'elle faz rir, e recorda a sua espéssa pessoa, de joelhos, dizendo com uma ternura babosa — oh minina!
De facto, o pobre brazileiro, o rico torna-viagem, é hoje, para nós, o grande fornecedor do nosso riso.

Pois bem! É urna injustiça que assim seja. E nos os portuguezes que cá ficámos, não temos o direito de nos rirmos dos brazileiros que de lá voltaram. — Por que, emfim, o que é o Brazileiro? É simplesmente a expansão do Portuguez.
Existe urna leí de retraccão e dilatacão para os corpos, sob a influencia da temperatura. (Apprende-se isto nos lyceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei. para as plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio acanham e estiolam. A bananeira, nos nossos climas, é urna pequena arvore tímida, retrahida, estéril: no calor do Brazil é a grande arvore triumphante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sábiás e outros, escandalosa de bananas. Mesma lei para os homens. O hespanhol das Asturias, modesto, humano, discreto e grave — passando para o sol do Equador, nas Antilhas Hespanholas, torna-se o sul-americano vaidoso, ruidoso, ardente, palreiro e feroz. Pois bem! O Bra­zileiro é o Portuguez—dilatado pelo calor.
O que elles são, expansivamente -nos somol-o, retrahidamente. As qualidades internadas em nós, estáo n'elles florescentes. Onde nós somos á sorrelfa ridiculitos, elles sao á larga ridiculões. Os nossos defeitos, aquí sob um clima frio, estáo retrahidos, nao apparecem, ficam por dentro: lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evidencias grutescas. Sob o céo do Brazil a bananeira abre-se em fructo e o portuguez rebenta em brazileiro. Eis o formidavel principio! O Brazileiro é o Portuguez desabrochado.
É o sol de lá que nos fecunda. O Chiado sob os trópicos di intóramente a rúa do Ouvidor. Rirmo-nos do brazileiro é de nós sem piedade. Nós somos o germen, elles são o fructo: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrario ! o brazileiro é bem mais respeitavel, porque é completo, attingiu o seu pleno desenvolvimento: nos per­manecemos rudimentares. Elles estáo ja acabados como a abobora, nos embryonarios como a pevide. O Portuguez é pevide de Brazileiro!

Que somos nós? Brazileiros que o clima nao deixa des­abrochar. Sementes a que falta o sol. Em cada um de nós, no nosso fundo, existe, em germen, um brazileiro entaipado, afogado — que, para crescer, brotar em diamantes de peitilho, callos e predios sarapintados de verde, só necessita embarcar e ir receber o sol dos trópicos. Cada lisboeta, sabei-o, traz em si a larva d'um brazileiro. Nos aqui vestimos cores escu­ras, lemos Renán, repetimos París, e no emtanto cá dentro, fatal e indestructivel, está aboborando — um brazileiro.

Quem o não tem sentido agitar-se, como o feto no seio da mãi? — Fitaes as vezes uma gravata verde com pintas escarlates? É o Brazileiro a remexer por dentro. — Desejaes inesperadamente uma boa feijoada comida em mangas de camisa? É o Brazileiro. — Appetece-vos ir visitar a Memoria do Terreiro do Paco? É o Brazileiro, lá dentro. — Lembra-vos reler urna ode de Vidal ou urna falla de Melicio ? É o Brazi­leiro ! Elle está dentro de vós, lisboetas! Ah, sabei-o! vós estaes sempre no vosso estado interessante — d'um Brazileiro!
E queréis uma prova ? É o verão! É o cruel verão! Então sob a temperatura germinadora — o Brazileiro interior tende a florir, a desabrochar, a alastrar em cachos. Entáo começaes a deitar o chapeo para a nuca, a usar quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com o palito na bocca, a exigir dos vendedores a agua do Arsenal, a frequentar a Deusa dos Mares! Sabéis o que é? É o Brazileiro, que la tendes den­tro na entranha, attrahido pelo sol, a querer romper!

Portanto quando nos rimos d'elle — intentamos a nós mesmos um processo amargo. No inverno a pevide contém a abobora: mas quando a abobora cresce no verão, é ella que contém a pevide. Nos cá contemos o brazileiro; elle lá, chegado ao Brazil, germina, brota em fructo, e nos ficamos-Ihe dentro. Ora se esmagarmos a abobora a grandes golpes de chacota, é sobre a nossa propria e rica pessoa que des-carregamos o riso fero. Tenhamos juízo ! Reconheçamo-nos n'elles como nós mesmos — ao sol!

Taes são as sabias verdades que soltamos de nossas máos. Aproveitai-vos, compatriotas!
E sobretudo certificai-vos que vos outros, que não deixaes a capital, não valéis mais que o minhoto que volta de Pernambuco.

O brazileiro nao é bello como Apollo, nem como o mais recente D. Juan: —mas tu, ó portuguez, tu tambem nao es bello, e se a tua bem amada t'o diz, é que não tem mais nada que te dizer e mente por mero deleite.

O brazileiro nao é espirituoso como Mery ou Rochefort: — mas tu, portuguez, não es certamente espirituoso! De cima dos embrulhos d'aquella tenda, quarenta folhetins t'o provam!
O brazileiro nao é elegante como o conde de Orsay ou Brummel: — mas tu, portuguez, dandy desventuroso do Chiado, ou contribuinte da rúa dos Bacalhoeiros, tens a tua elegancia dependurada no bom Nunes algibebe!

O brazileiro nao é extraordinario como Peabody que deu de esmolas cem milhões, nem como Delescluze que queimou París: — mas tu, portuguez, es táo extraordinario como urna couve, e aínda táo extraordinario como um chínelo.

Ora o brazileiro nao é formoso, nem espirituoso, nem ele­gante, nem extraordinario — é um trabalhador. E tu portu-guez não es formoso, etc. —es um mandrião! De tal sorte que te ris do brazileiro — mas procuras viver á custa do bra­zileiro. Quando vês o brazileiro chegar dos Brazis, estalas em pilherias: — e se elle nunca de la voltasse com o seu bom di-nheiro, morrenas de fome! Por isso tu — que em conversas, entre amigos, no café, és inexgotavel a trocar o brazileiro, — no jornal, no discurso ou no sermão, es inexhaurivel a glori­ficar o Brazileiro. Em cavaqueira é o macaco; na imprensa é o nosso irmao d'além-mar.

Brazileiro amigo, queres tu por teu turno rir do lisboeta ? A esse collete verde, que tanto te escarnecem, fecha bem as algibeiras; esse predio sarapintado d'amarello, que tanto te caricaturam, tranca-lhe bem a porta; esses pés, aos quaes tanto se accusam os j cañetes e os tamancos primitivos, nao os ponhas mais nos botéis da capital — e poderás rir, rir do carão amarrotado com que então ficará o lisboeta, que tanto ria de ti! "